Na rua Lúcia Bressan Passarin, uma travessa da rua Carlos Gomes, na Ponte São João, tem uma oficina que tira o pó, ajeita, conserta e coloca o passado para funcionar novamente. Antônio Roque Rodrigues, de 71 anos, é o dono dela. Ele arruma máquinas de escrever, calculadoras mecânicas, relógios de ponto e mimeógrafos há 58 anos. Na oficina em formato triangular, as paredes estão cheias de equipamentos que fazem parte da memória de quem tem mais de 40 anos. Como esquecer o barulho produzido pelo teclado de uma máquina de escrever? Ou o cheiro de álcool da folha de papel que passou pelo mimeógrafo?

A história de Roque é igual a dos objetos que conserta. Viveu o auge com eles. Hoje, já aposentado, continua consertando as engrenagens das máquinas de quem insiste em mantê-las em funcionamento. Por incrível que pareça ainda há tarefas que o computador não realiza. Ainda. No início da década de 60, ele trabalhou na Facit, empresa que produzia máquinas de escrever. De 1964 a 1977, Roque atuou na Comercial Panizza. Fez cursos e mais cursos para se aprimorar. E prestou assistência técnica em empresas de renome como o Banespa, Banco Geral do Comércio, Duratex, Vulcabrás, Sifco e Vigorelli. “Quem ganhava dinheiro era o vendedor. A assistência técnica empatava. Mas não posso reclamar. Deu para viver”, conta.


ANTÔNIO ROQUE EM SÃO PAULO, APRENDENDO O OFÍCIO:

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Roque era chamado sempre que um ‘tipo’ se soltava. Difícil explicar o que é ‘tipo’ para quem não sabe como funciona uma máquina de escrever. Tipos são as letras de metal que batiam na fita cheia de tinta ao se pressionar a tecla(foto ao lado). Quando a minúscula peça se desprendia, lá ia Roque soldá-la. “Também era comum ter de trocar a fita, ajustar a máquina. As vezes elas tinham problemas com o espaçamento. Eu também troquei muita borracha do cilindro quando ela endurecia”. O cilindro era a peça onde o papel ficava preso. A borracha absorvia o impacto do ‘tipo’. Quando não tinha jeito, Roque pegava o equipamento e levava para a oficina. Ali, desmontava, lavava e lubrificava.

Por incrível que pareça, ele conheceu muita gente que usava o tabulador. Quem trabalhou com máquina de escrever sabe o quanto era chato utilizar esta função. Tabular implicava em fazer cálculos para ‘programar’ a máquina, criando colunas invisíveis. Depois de tudo pronto, se apertava uma tecla e a máquina corria sozinha até o local onde era preciso datilografar. Um segundo toque, mais uma vez o cilindro ia até o local pré-determinado. Era algo trabalhoso e que muita gente preferia fazer no ‘olhômetro’. Daí muitos documentos terem as colunas repletas de números e palavras tortos. O tabulador deixava tudo certinho.


NA OFICINA DA RUA LÚCIA BRESSAN PASSARIN

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Ainda sobre máquinas de escrever, quem trabalhava com elas eram os datilógrafos. O curso para se aprender a usar as teclas e outras funções se chamava Datilografia. Em Jundiaí havia algumas escolas que ensinavam a se datilografar com os 10 dedos. Roque diz que conheceu muita gente que usava apenas os indicadores, o que era chamado na época de ‘catar-milho’. “Na Justiça do Trabalho tinha um funcionário, o Urubatan, que era um dos datilógrafos mais rápidos que conheci”, relembra Roque. Ele próprio confessa que não é um bom datilógrafo. “Não era o meu serviço”, brinca.

Os datilógrafos conviviam com mais dois terrores: corrigir um erro e usar papel carbono. No primeiro caso existia uma borracha, que segundo Roque era muito usada. Tinha também o corretivo, o ‘mata-gato’, um papel com tinta branca. Ele era colocado sobre a folha, em cima do erro. O datilógrafo batia a mesma tecla para encobrir o erro. Depois voltava e voltava a datilografar. Também havia o ‘branquinho’, tinta branca que era passada no local do erro com uma espécie de pincel. Porém, o terror de todo datilógrafo eram os formulários que precisavam ser preenchidos em três, quatro ou até cinco vias. O que hoje é feito num simples clique de “imprimir” após se determinar o número de cópias, há 30 anos era uma proeza para poucos. Entre as folhas de papel eram colocados os carbonos. É preciso lembrar que muitos formulários já estavam impressos. Então, cabia ao datilógrafo preencher os vários campos. E se as folhas não estivessem uma atrás da outra, as palavras não ficavam no lugar correto. Acertar as folhas com os carbonos era fácil. Difícil era passá-las juntinhas pelo cilindro. Era neste momento que o trabalho poderia ficar uma obra-prima ou uma tragédia grega.

O homem que faz o passado funcionar novamente diz que as fábricas de máquina de escrever tinham rivalidade como os times de futebol. “A Remington era americana. A Olivetti, italiana. Também tinha a Facit. A IBM produzia máquinas eletromecânicas. Era uma marca top de linha. A que tinha mais fama era a Olivetti”, assegura.

CONSERTAAinda existem muitos despachantes que usam máquinas de escrever. Por isto a oficina de Antônio Roque continua funcionando. Apesar de nunca ter feito publicidade, ele é muito conhecido entre os que mantêm em suas empresas equipamentos antigos mas que não podem ser aposentados. “Até bem pouco tempo não havia programas nos computadores para preenchimento de cheques. Além disto, os despachantes trabalham com alguns impressos que só são preenchidos com máquina de escrever”, explica. Por ironia, ao mesmo tempo que a tecnologia reduziu drasticamente o número de clientes, ela ajuda Roque a manter as portas de sua oficina aberta. “A pessoa tem uma máquina que quebrou. Ela entra no Google e acaba descobrindo que eu faço o conserto”.  As impressoras matriciais (foto acima/canto esquerdo) também foram aposentadas pela tecnologia. Eram barulhentas e demoradas. Funcionavam com papel perfurado nas laterais e que tinham de ser perfeitamente encaixados na impressora. Destas, pouca gente sente falta.

As peças para consertar as máquinas que vão parar na oficina de Roque não são mais fabricadas. Mas ele tem um estoque que é utilizado sempre que necessário. E também faz inovações. Como nos relógios de ponto. Os de corda recebem um motorzinho e voltam à ativa. “Existiam relógios que tinham uma campainha. Quando a pessoa marcava o ponto, ela tocava para avisar o chefe. Outros bloqueavam o registro fora do horário. O trabalhador tinha de ir ao Departamento Pessoal explicar porque estava chegando mais tarde ou saindo mais cedo”, lembra ele.

Mimeógrafos continuam sendo usados em algumas escolas. “O custo é muito baixo e dá para fazer até 50 cópias”, diz Roque. Eles são impressoras primitivas que funcionavam com uma matriz feita na máquina de escrever, por exemplo. Depois, esta matriz era colocada no cilindro e o papel branco passava por um feltro cheio de álcool. As cópias eram colocadas para secar e quando chegavam na classe, os estudantes tinham duas reações bem distintas: alguns adoravam o cheiro do álcool e outros ficavam com dor de cabeça.

Calculadoras de mesa existem aos montes na oficina de Antônio Roque. Até hoje ele conserta este tipo de equipamento para a extinta rede de supermercados Russi. “Tem pessoas que usam máquinas mecânicas para fazer conta de dividir até os dias atuais”, explica.


DETALHES DE UM PASSADO QUE NÃO MORRE GRAÇAS A ANTÔNIO ROQUE:

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Antônio Roque andava com suas ferramentas para cima e para baixo quando os computadores começaram a se espalhar como uma nuvem de gafanhotos. “Eu cheguei a ver um computador que era do tamanho da minha oficina. Quem iria imaginar que um chip iria substituir tudo aqui”, diz espantado. Não só substituiu como mudou hábitos, a diversão e a forma de se trabalhar. “Cheguei a fazer cursos para computador. Mas eu tinha muitos clientes e fui me aguentando com as máquinas de escrever e outras peças. Eu nunca imaginei que os computadores seriam a febre que se tornaram”, argumenta.

Em Jundiaí, explica Roque, o número de profissionais que arrumam equipamentos do passado não chega a meia dúzia. “A profissão acabará quando todos morrerem. Quem vai ter interesse em consertar estas coisas?”, pergunta. Para ele, a tecnologia, a modernidade, são coisas “bonitas”. Mas, tanto conforto trouxe inconvenientes. “O problema é que todas estas coisas acabaram com os empregos”, conclui ele.

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