Cada dia mais vemos noticias que aliviam nossos desesperos internos e pessoais, como também nos leva aos limites de nossas angustias, no mundo do esporte. Lemos, vemos, ouvimos e sabemos de fatos que são desestruturantes, analisando a questão em foco e adotando posições cabíveis dentro de uma sociedade justa e pautada em bons costumes.

Volto ao caso do atleta que atuou na Copinha São Paulo, com documentação falsificada. O caso entrou na mídia, semana passada, com força total, em clima de caça à bruxa e indignação. Todos os dedos apontavam apenas para o jogador, isentando de dúvidas e descuidos todos os demais envolvidos. Até ai, nenhuma novidade: processo de criminalização imediata!!!

No entanto, de repente, surgido do nada, aparece o mecenas. Aquele que iria empregar o jovem falsário, que iria abrir as portas do universo seleto de jogadores bem sucedidos, com um discurso pacificador e inocentando o jovem atleta de seu erro, limitando tudo a um simples deslize daqueles que buscam o estrelato, sem se preocupar com as consequências de seus atos.

Mais: lógico que apareceram as duas correntes. Uns que querem linchar o garoto em praça pública e outros que manifestam seus pendores cristãos, munidos de um falso moralismo e de uma inocência descabida (como se o erro cometido fosse algo desprezível e sem menor importância). E diante destas ideias as coisas começam a tomar seu delineamento: o falsário será contratado por uma equipe e foi acolhido por pessoa notória no meio esportivo.

Na ordem lógica das reflexões, devemos ponderar os fatos e as decorrências destes: afinal, foi lícito a falsificação de documentos? Como isso deve ser tratado? O que se fará com os demais atletas que, diante da desclassificação, ficaram impedidos da exposição midiática à que a Copinha se objetiva? Aparecerá um mecenas ou um protetor que conduzirá o restante do plantel a um posto seguro?

Ou merece suporte e vantagens apenas o que agiu com inadequação? Talvez a melhor questão, seja aquela que corre a boca pequena: então o errado vence? Uma história que tem um fim bem nacional, que acompanha bem as desproporções brasileiras, em termos de justiça social; talvez a juventude enquadrada entre 14 e 20 anos tenha crescido dentro destes parâmetros, o que dificulta o entendimento de problemas, de dilemas e de enfrentamentos. Neste momento cabe a questão: mas o esporte não educa? O esporte não transforma o homem?

Num outro espaço, temos a ascensão dos esportes de luta. O crescimento do MMA no Brasil está tomando um vulto infinitamente incontrolável, apesar da pequena divulgação. O Brasil vive, hoje, com nossos jovens esportistas das lutas, aquilo que os EUA viveram na década de 70-80, quando jovens migrantes buscavam as academias de lutas, dos subúrbios, para tentar a sorte e estabelecer um vinculo empregatício e a possibilidade de receber moradia, refeição e proteção para permanecer no país.

Mas as lutas realmente alavancam seus jovens lutadores à fama e à um espaço seguro e confortável, na seara sociocultural em que se insere? Quais são as consequências destas incursões e imersões às academias e aos campeonatos que se estruturam numa velocidade imensa, oferecendo pouca garantia de estabilidade econômica e emocional?

Se atentarmos para o aspecto econômico, de uma maneira bem objetiva e acelerada, podemos responder que o caminho está por se fazer, visto quenada oferece segurança maior do que a escolaridade e o apoio familiar, entretanto nem todos tem a possibilidade desta escolarização e da família oferecendo suporte.

Quando focamos o esporte nacional, e não valem os exemplos internacionais porque os modelos sociais são diferentes, perceberemos que poucos atletas saem de lares constituídos e que menos ainda contam com um patamar econômico que de suporte até que a carreira deslanche, com desenvoltura e robustez. O que temos são famílias, em sua maioria de vezes, que investem na iniciação esportiva precoce, contabilizando, desde cedo, os benefícios de passes de ônibus, lanches ou refeições oferecidas pelas equipes que miram seus olhos na futura promessa.

Acontece que, na maioria das vezes, a promessa se transforma numa eterna promessa, sem nunca se concretizar, e aquele jovem iniciante não atinge níveis de desenvolvimentos técnicos e táticos de excelência, percebe-se algum comprometimento sociocultural acarretado pelo descompromisso com a formação escolar e um maior agravamento nos processos afetivos psicológicos, motivados pelas frustrações e estigmas favorecem a uma marginalização desproporcional. Na fugacidade em que vivemos, tal deslocamento social torna-se um limitador deplorável para o atleta em formação.

Mas o esporte não transforma o homem? O esporte não garante uma escala social? Estudos clássicos de olhares humanistas são muito realistas e sugerem que pouquíssimos dos envolvidos no movimento esportivo conseguem alavancar sua vida, quando não partem de um espaço alicerçado e preocupado com sua formação, enquanto cidadão.

Desta forma, estes estudos apontam que uma família que apoia e orienta (mas que não vende ou expõe seus filhos a produzir rendas para sustento de todos daquele clã), tem mais chances de se sair bem e oferecer perspectivas de boas escolhas e bons desdobramentos, na vida profissional escolhida. Estudar e fortalecer os vínculos afetivos são pilares que sedimentam boas escolhas e boas opções, de modo a favorecer certa autonomia neste mundo empresarial em que se instala o movimento esportivo.

Aqueles que são apenas consumidores do esporte espetáculo talvez não sintam a questão desta forma e até desprezem as necessidades básicas, acreditado ingenuamente que um jovem que vive num alojamento, distante da família e da escola, que tenta um espaço de notoriedade semelhante ao atingido por Neymar, Ronaldo e Davi Luiz é uma rotina e que todos os que tentam, conseguem.

Infelizmente, esta pirâmide é muito estranha e seu topo é algo infinitamente elitizado: pouquíssimos chegam a ele e mais raro ainda os que ali permanecem. Significa então que, transformação não é para todos nem para muitos; trata-se de um fenômeno raro e que carece de uma boa orientação para permanecer no Olimpo Esportivo.

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COMO OS ATLETAS SE TORNAM VULNERÁVEIS?

É muito interessante ler ou ouvir depoimentos de atletas diferenciados, como o caso específico de Raí, que em seu período áureo aproveitava seu tempo livre para visitar museus e estudar francês, o que foi muito criticado na época, porque jogar tem que treinar!!! No entanto, Raí é um dos atletas que nos representa e faz a diferença, no ambiente esportivo, pela forma como se desloca nos meios sociais, inclusive o esportivo. Quantos Raístemos?

Esta transformação que todos pretendemos e almejamos é um fenômeno social que demanda de muita preparação e ambição: ela acontece em situações específicas e se sedimenta lentamente, em especial quando é merecedora de cuidados especiais. Não basta umas aulas de Inglês, semelhante as oferecidas em escolas de nível fundamental ou médio ou um conjunto de palestras de autoajuda para promover um novo status nesta caminhada.

Verdadeiramente as transformações são deslocamentos que se operacionam com efetividade e direcionamento, desde que o conjunto se encontre em fase específica de modelagem. Algumas pessoas não conseguem se adaptar a todas as mudanças que tentam atingir, por falta de perspectivas e conhecimento do porvir. Talvez mais, ainda: não estão preparados para as mudanças.

Ouvimos muito falar em resistência ao novo, o que torna mais difícil a transformação; entretanto estudos apontam que mais difícil do que transformar, do que enfrentar o novo, é o manter-se na nova posição. Permanecer num novo patamar implica em saber viver com as dependências anteriores e focar nas inovações com precisão e habilidade. Notícias indicam que alguns atletas atingem a notoriedade e não conseguem permanecer no topo, justamente, por não conseguir de desprender do passado.

Outra proposta de leitura deste fato psicossocial é aquela que nos direciona a ler as mudanças brasileiras comparadas às mudanças internacionais: “isso foi assim com aquele tenista alemão…” ou “aquele atleta cubano conseguiu igual feito por….” ou, então, “…..na Itália eles traçam estes projetos iguais aos nossos (sic)…” . Porém, a realidade nacional é a questão nacional: diferente de todos os demais contextos e única em seu tempo e espaço.

Numa tentativa de rumar para um bom direcionamento, cabe-nos questionar: a quem compete direcionar esta transformação? Quais os papéis que exercem a Educação Física escolar e o técnico esportivo neste cenário? Que tipo de formação precisa ter o profissional que se aventura a trabalhar com aqueles que enxergam no esporte uma possibilidade de mudança de status social?

O cenário brasileiro ainda carece de alguns arranjos para que se pense num esporte do tamanho compatível com o território nacional; a ingenuidade e o desconhecimento de propostas arrojadas e de fundo são impeditivos para uma transformação duradoura e eficaz. Apenas com uma boa formação cidadã veremos nossos atletas promoverem suas transformações e permanecerem em seus postos, sem sofrimento psíquico e sem a ideia de que eles devem ser arrimos de multidões.

Para que tenhamos um esporte que transforme o homem necessitamos antes de professores que enxerguem estes homens em seus contextos busquem ensinar aos novos aprendizes não a modalidade ou as táticas daquela modalidade. Ensinem manejos dos estados emocionais, caminhos para a autonomia, habilidades sociais e, então, os fundamentos da modalidade. A questão é plural e não minimalista, como ainda vemos, nas escolinhas de esportes onde os pais pagam para seus filhos aprenderem a ser atletas; não se paga para ser atleta: ou se é habilidoso ou não haverá transformações.

Desculpe-me…esqueci de um complemento. A habilidade não é apenas a habilidade esportiva, mas a habilidade social, a habilidade emocional, a cultural, a cidadã…então, sim, teremos transformações. (foto acima: EBC)

AFONSO 2AFONSO ANTONIO MACHADO

É docente e coordenador do PPG- Desenvolvimento Humano e Tecnologias da UNESP. Mestre e Doutor pela UNICAMP, livre docente em Psicologia do Esporte, pela UNESP, graduando em Psicologia.