O hipopótamo, também chamado “cavalo do rio”, é um mamífero terrestre típico do continente africano. Como característica mais marcante, necessita manter-se imerso na água a maior parte do dia devido à sensibilidade de sua pele, só deixando emersa parte da cabeça e olhos.
Quando se trata de contaminação humana por agrotóxicos, um dos grandes problemas de resolução ainda distante é sua notificação nos órgãos públicos de saúde, não só no Brasil como em todo o mundo.
O que têm a ver essas duas afirmações? Aparentemente nada. Pois não é assim que pensou Gilles Forget, pesquisador canadense que em 1983 elaborou o “Modelo do Hipopótamo”, que as relaciona com notável exatidão, explicando de forma simples e visual uma questão complexa. Vamos conhecer?
O modelo abaixo traz o animal dividido em partes: cada uma expressa uma situação relacionada à notificação da contaminação humana por agrotóxicos, que por sua vez a relaciona ao tamanho que esta representa no todo, usando como exemplo nosso hipopótamo.
A parte que fica fora d’água, emersa, representa os casos de contaminação informados ao órgão de saúde, sejam nos postos em que se possam fazer os registros ou nos centros de informação e assistência toxicológica (CIAT´s), para os quais os pacientes podem ser encaminhados. Aí residem duas informações importantes: são casos em que o diagnóstico foi correto e são assim informados como tal ao órgão competente, passando a fazer parte dos registros oficiais. Mas vejam como é de tamanho desproporcional ao resto do corpanzil do hipopótamo!!
A segunda porção, logo abaixo dos casos informados, diz respeito aos casos diagnosticados e não informados, ou seja, que receberam atendimento médico mas não houve seu registro no órgão de saúde oficial. Isso pode acontecer quando o próprio sistema não funciona corretamente na localidade, ou mesmo quando há erros de transmissão e anotação do diagnóstico realizado.
Tomando-se a terceira porção do hipopótamo, nos parece que é a que ocupa maior espaço: são os casos de diagnóstico errôneo. Isso que dizer que a pessoa com sintomas de contaminação por agrotóxicos chegou a ir ao órgão de saúde, mas enfermeiros, ou médicos que lhe prestaram socorro, não o fizeram corretamente, resultando na não notificação dessa contaminação.
O erro no diagnóstico nos mostra como a questão não é simples. Vejamos, há dois lados para analisarmos: de um, a própria dificuldade dos profissionais de saúde em fazer esse diagnóstico. É recente a inclusão de disciplinas de Toxicologia nos currículos das escolas de medicina que ensinam os efeitos prejudiciais à saúde de substâncias tóxicas, e como diagnosticá-los, coerente com a região do país, o universo dos trabalhadores e suas atividades agropastoris.
Em contrapartida, se virmos por outro lado, o erro do diagnóstico pode ser devido aos sintomas apresentados, pois as intoxicações agudas, leves e moderadas, não graves, e as exposições de longo prazo, podem simular outras patologias comuns, como dor de cabeça, mal-estar, fraqueza, tonturas, náuseas e azia. Assim, podem ser confundidos com outros problemas de saúde e não se estabelecer relação com os venenos, ou, pior, com a mistura deles, que muitas vezes é realizada pelo agricultor no ato da aplicação, dificultando um pouco mais o que já estava complicado…E se não se estabelece uma relação de causa e efeito bem delimitada, também difícil o diagnóstico preciso da contaminação pelos profissionais da saúde.
Passemos à outra parcela. Aqui o paciente apresenta os sintomas, mas não busca atenção médica. Isso ocorre por uma variedade de motivos, que podem ser desde a distância a um centro de atendimento especializado até tradições e crenças que podem existir no meio rural, e mesmo as dificuldades da própria escrita e leitura, para que se dê a troca e a compreensão plena do real perigo da exposição aos agrotóxicos.
Essa dificuldade de acesso a serviços de saúde, basicamente do setor público, preços dos remédios, entre outros, muitas vezes também pode fazer a pessoa permanecer em sua casa fazendo uso de medicação caseira para curar os sintomas da contaminação, pois, mais uma vez, podem se confundir com outros, de acordo com o que comentamos no item anterior.
E por fim há os afetados, porém assintomáticos, ou seja, que foram expostos ao agrotóxico mas não apresentam sintomas típicos de intoxicação. Então, o agricultor vai ao campo, recebe na pele ou respira os resíduos do veneno e não sente nada depois nem no dia seguinte. Até hoje não há explicação definitiva que dê conta de todas as razões para que isso aconteça. A presença desse grupo de pessoas reforça o caráter “multifatorial” da contaminação: são os múltiplos fatores a que estão sujeitos os trabalhadores que lidam com esses produtos químicos e as dificuldades em estabelecer padrões para análise, diagnóstico, prevenção, tratamento médico.
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MAS O QUE É ESSA TAL DE CERTIFICAÇÃO AMBIENTAL?
O que se tem absoluta certeza é que a situação é muito grave, no mundo e no Brasil. Para cada notificação, a Organização Mundial de Saúde calcula que ocorram 50 outros casos (RADIS, Fiocruz, 2010). Em 2007, no Brasil, tem-se o valor de 1,96% de notificações para ocorrências de contaminação humana por agrotóxicos de uso agrícola, o que já é preocupante. Quando se toma o número de 19.235 casos registrados e, por estimativa, de 981.377 ocorrências de contaminações passíveis de notificação, isso realmente ultrapassa uma simples “preocupação” de saúde pública.
“Esses dados são apenas a ponta do iceberg, já que representam em sua maioria os casos agudos graves, que também são sub-notificados” Acrescente-se que os efeitos crônicos relacionados aos agrotóxicos quase nunca são contabilizados pelos sistemas de informação oficiais. Por trás desses efeitos se esconde uma face ainda mais sombria do uso do agrotóxico, que encontra resistência da sociedade e da própria vítima em encará-la.
O problema existe. Pesquisas, artigos, livros, reportagens, filmes, relatórios são publicados e continuarão sendo, pois o caminho é a saúde para todos: seja para quem consome produtos agropecuários, para o ambiente no entorno e para aquele que os produz. Como poderia ser diferente? (foto principal brasilescola.uol.com.br)
ELIANA CORRÊA AGUIRRE DE MATTOS
Engenheira agrônoma e advogada, com mestrado e doutorado na área de análise ambiental e dinâmica territorial (IG – UNICAMP). Atuou na coordenação de curso superior de Gestão Ambiental, consultoria e certificação em Sistemas de Gestão da qualidade, ambiental e em normas de produção orgânica agrícola.