Hoje trago algo um pouco diferente dos tradicionais artigos que aqui escrevo quinzenalmente. Diferente e talvez inédito. Publico um bate-papo com Narayan Porto (foto ao lado), da área de Filologia e Língua Portuguesa da Universidade de São Paulo (USP). Conversamos sobre um documento de Jundiaí, estudado por ela, datado de 1754, e que trata de um processo de feitiçaria.
Narayan cursou bacharelado em língua portuguesa e inglesa, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). Tem 27 anos, nasceu e mora em São Paulo. Hoje está concluindo o mestrado na área de Filologia e língua portuguesa, na mesma instituição. Ela sempre trabalhou com documentação antiga desde a iniciação científica, em 2014.
Como ficou sabendo deste documento sobre feitiçaria?
Fui informada a respeito da documentação durante uma aula de Filologia Portuguesa, ainda na graduação, no ano de 2013. O professor que ministrava o curso, Prof. Dr. Marcelo Módolo, informou os alunos da turma que duas alunas da pós-graduação – as Dras. Helena de Oliveira e Nathalia Fernandes – haviam encontrado, no Arquivo da Cúria Metropolitana de São Paulo, vários processos da Justiça Eclesiástica, que ainda não haviam sido publicados, estudados e muito menos transcritos. Portanto, era uma documentação inédita.
Qual o teor destes registros?
A documentação que estudo no mestrado é um processo da Justiça Eclesiástica paulista, uma espécie de “ramificação” do Tribunal do Santo Ofício, que acusa duas mulheres, Thereza Leyte e Escholastica Pinta da Sylva (mãe e filha, respectivamente) de matarem o primeiro marido de Escholastica, Manoel Garcia de Oliveira (em 1746), utilizando de feitiços, de terem pacto com o demônio e de matarem outros homens, um deles inclusive porque não queria se casar com uma irmã das acusadas (a documentação é vaga nessa questão).
De onde e de que ano é o documento?
O processo foi aberto no ano de 1754, em Jundiaí e, apesar de o primeiro fólio(folha) estar datado de dezembro do referido ano, há outros fólios datados, por exemplo, de julho de 1754. Thereza Leyte era casada com João da Sylva Moraese. Escholastica, sua filha, estava casada com Antonio Marques Barboza, isto é, em seu segundo casamento. Muitas testemunhas alegaram que as acusadas não mataram Manoel por meio de feitiçarias e que o citado havia falecido em razão de uma doença adquirida no “Certam do Cuyaba” conhecida como “mal de Sam Lazaro”, isto é, lepra. Testemunhas também afirmaram que as duas mulheres eram tementes a Deus, sendo mulheres “de boa conciencia”, “boas christans” e que amavam muito ao falecido. Além disso, também é mencionado na documentação que Escholastica e Manoel haviam tido um casal de filhos.
E o que de fato aconteceu com Thereza Leyte e Escholastica, sua filha?
As rés estavam sob risco de excomunhão, caso fossem condenadas, porém, foram absolvidas e, ao que parece, tiveram que pagar algum tipo de multa e o processo foi encerrado em maio de 1755.
Quais as características do manuscrito que foi produzido em Jundiaí em 1754?
O processo é composto por 48 fólios (frente e verso), sendo que, o verso de quatro deles está em branco e o papel utilizado não é pautado. Foram identificados, ao longo da documentação, 11 pessoas diferentes participaram da redação do processo, que conta também com cores de tinta diferentes, dentre elas, preta, marrom, marrom clara (às vezes em tons mais avermelhados). E está em bom estado de conservação.
Quais os dados mais interessantes, na sua opinião, sobre o documento?
É interessante observar a causa da denúncia de feitiçaria, pois testemunhas afirmaram que os parentes do falecido Manoel Garcia não simpatizavam muito com as rés e que havia um conflito entre eles e as rés por conta de uns “administrados”, isto é, escravos indígenas que pertenciam ao falecido, o que teria motivado a denúncia contra as rés. Caso Thereza e Escholastica fossem condenadas por feitiçaria, não seriam mais um empecilho aos parentes de Manoel Garcia, que poderiam obter a posse dos escravos indígenas que, de acordo com a documentação, eram índios Carijós. Outro fator que pode ter resultado no conflito ou agravado o mesmo é o fato de Manoel Garcia não ter feito testamento, portanto, não havia registro escrito a respeito de quem ficaria de posse dos escravos após sua morte. Junto ao processo contra Thereza Leyte e Escholastica Pinta da Sylva também foram encontrados outros processos, e em todos eles os réus constituíam-se de escravos e escravas, o que nos levou a crer que no caso das acusadas em questão não seria diferente. Entretanto, o fato de que havia uma disputa por posse de escravos e que não há menção, em nenhuma parte da documentação, a respeito da cor da pele das rés são dois fatores que nos levam a acreditar que Thereza e Escholastica eram brancas, e não negras.
Além disso, também são mencionados, nos manuscritos, os atos que foram considerados prática de feitiçaria por parte das rés: é dito que Escholastica causou feridas nas pernas de seu falecido marido apenas ao tocá-las; afirma-se também que Escholastica mexeu, com as mãos, em um prato de comida de Manoel e que, ao comer do mesmo, o falecido começou a sentir ânsias e dores de estômago; Escholastica também estava sendo acusada de ter deixado Manoel Garcia cego, apenas por ter tocado em seus olhos com as mãos.
Além dessas práticas, nos manuscritos também consta a informação de que alguns sapatos de Manoel Garcia foram encontrados enterrados “ao pé do portal” de sua casa, contendo pedaços de uma camisa sua dentro deles, ato atribuído à Escholastica e considerado prática de feitiçaria.
Outro ponto a ser observado é que, como Manoel já estava doente (com lepra), seus parentes contrataram um feiticeiro chamado Francisco, que era negro e escravo (já falecido à época do processo) para curá-lo e espalhar boatos a respeito das acusadas, dizendo que elas eram feiticeiras e haviam enfeitiçado Manoel. Testemunhas relataram que o feiticeiro Francisco fazia feitiços colocando dinheiro em um copo com aguardente e que, nesse copo, afirmava que via a sombra de quem havia feito malefícios ou feitiços. Entretanto, testemunhas também alegaram que Francisco possuía fama de enganador e embusteiro.
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É importante dizer também que o pai de Escholastica exercia o cargo de juiz ordinário na Vila de Jundiaí – que seria um magistrado eleito anualmente pelo povo e pela Câmara, cuja função era zelar pelo bem-estar social, por manter a ordem na vila ou cidade, tendo domicílio na mesma – e ordenou que Francisco fosse preso. Além disso, foi estabelecido que o negro fosse açoitado no pelourinho – espécie de coluna em praça ou em qualquer outro local público de vila ou cidade, onde se prendiam os criminosos por argolas ou pela cintura, para ficarem expostos ao escárnio da população ou para serem açoitados – e, em seguida, devolvido a seu dono. Também consta nos manuscritos a informação de que Francisco pediu perdão às rés pelos boatos que lhes havia atribuído. Assim, é possível dizer que o poder do pai de Escholastica pode ter influenciado o caminho que o processo tomou e talvez, quem sabe, até mesmo o seu resultado.
Também é interessante observar que, apesar de o papel utilizado no processo não ser pautado, isto é, não ter linhas, os redatores do processo – dentre eles escrivães, um meirinho, um promotor, entre outros – tinham uma noção bem estabelecida de mancha (espaço utilizado para o texto) e pauta, mesmo elas não sendo explicitamente demarcadas.
Por que o manuscrito é importante?
O processo-crime contra Thereza Leyte e Escholastica Pinta da Sylva é importante pois ajuda a compreender o modo pelo qual a Inquisição atuou na colônia portuguesa, mesmo que de forma “indireta”, tendo em vista o fato de que as visitações oficiais do Tribunal do Santo Ofício priorizaram o Norte e Nordeste do Brasil, o que não fez com que a Igreja e a Coroa se esquecessem do Sudeste do território e mesmo do interior. Logo, essa documentação mostra que, mesmo na segunda metade do século XVIII, no interior de São Paulo, a Igreja Católica não dava margem para a heresia.
Além disso, os fac-símiles ainda revelam aspectos importantes da língua portuguesa do referido período, por exemplo, a utilização do “y” como semivogal, como em “Jundiahy”, “Leyte”, “Nogueyra”, “Ley”, “Pay” (pai), “May” (mãe), “muyto”, “mayor”; variação entre “i” e “j”, como em “escrevj” e “Iundiahy”; e variação também entre “u” e “v”, em “Neues”, “Silua”, “uerdade”, “Reuerendo”, bem como a não padronização de pontuação e acentuação. Logo, essa documentação constitui-se de fonte importante para historiadores, linguistas e profissionais da área do direito.
KATHLIN MORAIS
Jundiaiense, mestra em Filologia e Língua Portuguesa pela USP, técnica em conservação e restauro de documentos em papel pelo SENAI e professora de Francês e Inglês na Quero Entender – Aulas Particulares.