… foi realizada uma matéria no jornal o Estado de São Paulo, em 2008, de autoria do jornalista Marcelo Rehder, que tratava do cotidiano de uma fábrica de sapatos, produtos estes vendidos em lojas elegantes e caras, no mesmo país e internacionalmente. O objetivo foi mostrar a distância abismal, na Índia, entre as condições de trabalho dos funcionários e os pontos e preços de venda do produto final, revelando a face crua e perversa da livre concorrência e da globalização.
Ainda que já se passassem mais de nove anos da publicação, não podemos dizer que a crítica que se fez, atrelando o sistema produtivo global à desvalorização do ser humano, também esteja ultrapassada. A busca pelo menor preço e lucros máximos vai bater na porta de sociedades cuja massa de indivíduos vão se submeter a essas e outras condições precárias de sustento, pois se trata de sobrevivência. A coisa é tão engendrada que raros conseguem sair do circulo vicioso de pobreza e falta de perspectiva, sem estudo, água potável, moradia. Nesse círculo o indivíduo se submete, sem críticas nem revoltas, assim como farão seus filhos, seus pais, décadas após décadas.
O caso desta marca de sapatos indiana é emblemático: há um vídeo no Youtube, que nos mostra imagens que causaram espanto e indignação à época. Algumas ilustram este texto.
O local de trabalho abriga adultos e crianças, que lá vivem todo o tempo, pois dormem, cozinham, lavam suas roupas e trabalham cerca de 16 a 17 horas por dia: esta é a vida deles. O fazem praticamente por comida e abrigo, similarmente ao trabalho escravo, produzindo de 800 a 900 pares por dia, com um índice de devolução de menos de 1%. São quase 200 funcionários que se dispões para trabalho e repouso em bancadas, que otimizam o espaço.
Vamos colocar alguns dados demográficos, comparativos, para podermos analisar melhor: a cidade onde se localiza esta “fábrica” é Mumbai, ou Bombaim. Possui 19.1 milhões de habitantes (2016), com alarmantes 28.000 habitantes/km2, figurando, com Nova Delhi, a capital, nas mais populosas do país. A título de comparação, Tóquio conta com 13.500 pessoas/km2, Nova York com cerca de 6.000 e São Paulo (capital), com 7.400 habitantes/km2. Ainda, hoje, 35% dos indianos vivem com menos de 1 dólar por dia.
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O fato que agravou o impacto, relata o próprio jornalista na matéria, foi que o dono da fábrica não só mostrou as suas dependências, sem resistências para as fotos, mas até mesmo com certo orgulho apontou as vantagens obtidas e seu lucro.
Desde então várias notícias têm “pipocado” na mídia, com acusações de trabalho escravo de grandes marcas esportivas, de roupas de grife e outras mais. E grupos ambientalistas e de direitos humanos pedindo o boicote no consumo de tais produtos.
Aí se faz uma pergunta: em que medida o consumidor, ciente do sistema de produção daquele produto que está adquirindo, é participante ou conivente a esse sistema? Não é pergunta fácil. Resposta? Menos ainda. Questões que giram em torno dessa banalização (no caso, da escravidão, do trabalho forçado), são temas atuais em encontros e palestras no mundo todo, nos quais se debruçam pesquisadores, intelectuais, empresários, gestores para entender o que se passa e as saídas ou soluções para o problema.
Hoje não é mais possível se pensar em ambientes sustentáveis sem considerar os seres que vivem dele e nele: fauna, flora e populações, como indígenas, ribeirinhos, quilombolas, pequenos agricultores. Nem tão pouco em certificações ambientais, pois isso se aplica também às pequenas, médias e grandes empresas, sejam voltadas ao agribusiness ou não: se não fala diretamente a elas, fala aos seus fornecedores. Por exemplo: se a sua cadeia de fornecedores de matéria-prima inclui a madeira, e esta provém de extração ilegal, como o empreendedor poderá conseguir a certificação ambiental tão almejada? E se essa madeira é obtida via trabalho forçado ou escravo?
Outras normas, elaboradas mundialmente, vieram ao encontro dessas demandas. Uma delas é a SA-8000, de Responsabilidade Social, criada em 1997 por uma ONG americana; outra, brasileira, elaborada pela ABNT e publicada em 2004, é a NBR 16.001, que trata de um sistema de gestão de responsabilidade social, ambas passíveis de auditoria e certificação.
A grande sacada delas é enfatizar o caráter de junção das normas, entrelaçando-as em toda cadeia, seja ambiental, de qualidade, de saúde e segurança etc., para somar e multiplicar benefícios sociais a todos envolvidos, direta ou indiretamente. Até a próxima!
ELIANA CORRÊA AGUIRRE DE MATTOS
Engenheira agrônoma e advogada, com mestrado e doutorado na área de análise ambiental e dinâmica territorial (IG – UNICAMP). Atuou na coordenação de curso superior de Gestão Ambiental, consultoria e certificação em Sistemas de Gestão da qualidade, ambiental e em normas de produção orgânica agrícola.