EU MOREI NA RUA e jamais vou me esquecer disto

O jornalismo me proporcionou algumas experiências que nunca vou esquecer. Foi por meio da profissão que voei pela primeira vez  – ainda sinto o coração pulando na garganta e as mãos suadas de nervosismo só de lembrar – conversei com grandes artistas, músicos, jogadores de futebol badalados e políticos de renome nacional. Mas nada que tenha me marcado tanto quanto a experiência de ser um morador de rua.

A proposta surgiu no jornal em que trabalhava depois que algumas pessoas foram roubadas na Praça da Bandeira, região central de Jundiaí. Uma delas morreu após ataque com faca. Os suspeitos seriam criminosos infiltrados entre os moradores de rua assistidos pela Casa Santa Marta – instituição da Igreja Católica que acolhe essas pessoas e lhes oferece reinserção social.

Como já disse nos artigos anteriores, o jornalismo investigativo é minha paixão. Então, não pensei duas vezes e topei o desafio. Deixei a barba crescer (tarefa difícil, pois quem me conhece pessoalmente sabe que neste quesito sou ‘categoria penugem’), coloquei um bonezinho meio surrado que tinha em casa e logo às 5h já estava na rua, com destino à Casa Santa Marta.

Cheguei meio tímido, pois não sabia como seria recebido ali. O medo de ser descoberto era a maior dificuldade. Fiquei num antigo ponto de ônibus existente na praça, quase em frente à Casa Santa Marta, observando o movimento. Ao lado da entidade existe a igreja Nossa Senhora do Rosário e São Benedito e é nas escadarias dela que os moradores de rua se concentram. Fui para lá.

Meu primeiro contato foi com um senhor que, obviamente, virou personagem principal da reportagem. O ‘Barba’, como se identificou ali, era um homem grisalho, de fala mansa e muito inteligente. Tinha uma vida boa até se deparar com algumas desilusões e, posteriormente, entregar-se ao vício do álcool. Resolveu morar na rua após se desentender com familiares e, desde então, a lua e as estrelas eram o seu teto.

A situação destas pessoas é tão séria no Brasil que já há decisões da Justiça determinando a inclusão de moradores de rua no censo de 2020, conforme noticiou o Jundiaí Agora dia 23 de janeiro. Não há números oficiais – o que dificulta principalmente a definição e aplicação de políticas públicas – mas a estimativa é que pelo menos 100 mil pessoas vivam assim em todo o território nacional.

Na conversa com Barba, entendi porque a maioria dos moradores de rua prefere ficar ali do que buscar refúgio em albergues ou entidades sociais. Eles não querem seguir regras para entrar, sair, acordar em determinado horário, tomar banho etc. Na rua, então, podem fazer o que quiser.

Um momento crítico: quando o fotógrafo Mateus Vieira chegou para registrar minha aventura. Ele ficou de longe, fotografando da praça, mas aquilo me causou pavor. “É agora que vão me identificar!”, pensava a toda hora. Tive um reflexo de me levantar e xingar, dizendo que não queria foto minha e alguns até se levantaram e saíram comigo dali. Profissional experiente, o Mateus conseguiu cumprir sua missão e as fotos usadas na reportagem ficaram muito legais!

Para o café da manhã oferecido na Casa Santa Marta, havia mais adultos e idosos, tanto homens quanto mulheres. No horário do almoço, apareceram mais jovens, falantes, agressivos e tentando intimidar os demais. Percebi que a barra era mais pesada porque até uma viatura da Guarda Municipal estava no local. Eram os GMs que faziam o controle de acesso.

No portão, falei que era de Embu (SP), que havia chegado ali de trem para procurar familiares e que não tinha onde ficar. Meu nome completo, porém, fiz questão de dar porque queria que aquele momento ficasse registrado na entidade (os responsáveis pela Casa Santa Marta souberam somente após a publicação que um jornalista esteve ali entre os assistidos). O GM, então, me aconselhou a passar com a assistente social para voltar à cidade de origem. Até dinheiro para a passagem de trem eu teria.

Na mesa do almoço havia arroz, feijão, pés de frango, salada e suco – todos alimentos doados por empresas e apoiadores da causa. Antes de comer, fomos convidados a fazer uma oração. Um momento importante, mas também engraçado porque tinha um homem bem na minha frente que não sabia se orava ou continuava a dar umas beliscadas no prato.

Falei com a assistente social, que me pediu para ir até o SOS (Serviço de Obras Sociais) solicitar a passagem para Embu. Pelo que entendi, uma viatura da GM também me acompanharia, para certificar-se de que voltaria mesmo.

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A Casa Santa Marta já tem 20 anos de um trabalho muito bonito, importante e necessário para aqueles que mais precisam. Não era justo crucificá-la por conta dos roubos e furtos. Pude falar exatamente isso na reportagem porque senti na pele o que é precisar de amparo quando não se tem nada.

Agradeci e fui embora para casa chorando. Tudo aquilo me tocou muito mesmo, porque somos fadados a sempre reclamar da vida, a querer sempre mais e não conseguimos olhar ao redor para perceber que há tanta gente numa situação muito pior. E mais: que, apesar disso, elas vivem felizes, da maneira delas, agradecendo simplesmente porque estão a lamber os beiços com um pé de frango nas mãos. (Foto: 32xsp.org.br)


EMERSON LEITE

Formado em Jornalismo pela UniFaccamp; Pós-graduado em Segurança Pública e Cidadania pela Faculdade Anhanguera; Atua na área desde 1995: passou por rádios, jornais impressos, site e desde 2010 trabalha como assessor de imprensa na área política.