Recentemente ouvi uma entrevista de um músico, violonista, falando de sua arte. “Muito estudo e disciplina, não tem outro caminho”. O entrevistador, muito perspicaz, faz então uma analogia com a fábula da “Cigarra e a Formiga”(ilustração abaixo) conhecida por todos, na qual se tem dois papéis bem distintos: o da cigarra, que canta e toca música e da formiga, que trabalha todo o dia, o dia todo. É uma fábula que mostra como na natureza tudo tem seu tempo.

Há algumas versões diferentes. A mais lembrada é aquela que expressa a displicência e a vida boa da cigarra, em seu oficio que não é oficio, o de tocar, em contraste com a responsabilidade exemplar da formiga, cujo trabalho incansável é a razão de sua sobrevivência.

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Ambos concluem como é equivocada essa visão que nos é trazida, via fábula, desde os tenros anos! Pois o ofício de tocar é deveras árduo, exigindo muitas horas de treino diárias, por décadas, que jamais têm fim. Mesmo as virtuoses, como Yamandú Costa, ou Dino 7 cordas, apenas para citar uma pontinha do iceberg de exímios instrumentistas brasileiros, dedicam sua vida à música.

Na fábula, carrega-se um pouquinho mais nas tintas a diferença entre ambas, no intuito de mostrar à criança que deverá seguir o caminho “bom”, da formiga, e se dar bem o ano todo, ou na vida e não ir “na fiúza” da cigarra, o que só lhe trará dissabores, pois os invernos chegarão e ela não terá como viver.

Mas por que se tem que escolher um ou outro? Ou melhor, será que temos? A natureza nos mostra que tudo pode ser no seu devido tempo. A formiga pode trabalhar com afinco, mas reservar um tempo para fruir a música, a arte. Fruir, como uma vez nos ensinou o professor Salvador Bruno, visionário mestre dessa cidade no outrora Instituto de Educação. Fruir, ou seja, desfrutar, apreciar, curtir. E a cigarra, para cantar e tocar, haverá também de trabalhar muito para isso. Portanto, há o tempo de tocar e o de ouvir, pelo prazer, e há o tempo do esforço, para que isso aconteça.

A natureza nos mostra o equilíbrio, que vem pelos seus ciclos. Assim, é hora de caírem as folhas, para depois outras brotarem renovadas, vindo as flores, frutos e sementes. Há períodos de hibernação, para depois haver a reprodução das espécies e prosseguir a vida. Tomemos as estações do ano: chuvas, estiagens; calor, frio. Todos os seres vão participar dessas variações, retraindo-se ou expandindo-se. Nada é por acaso. Não se tem o que se quer, quando se quer. Quando o ser humano adota essa postura, esse equilíbrio começa a se quebrar.

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Quer um exemplo prático? Não é possível produzir todas as frutas o ano inteiro. Se quiser qualquer uma, fora do seu tempo, ou seja, fora da sua estação, das duas, uma: ou se vai obtê-la de um lugar longe, até mesmo de outro país, com custos, ou vai obtê-lo com indutores e insumos químicos, agrotóxicos, com custos que podem não aparecer, mas estão embutidos na saúde do agricultor, nas águas e solos contaminados, nos resíduos químicos nesse fruto. São as chamadas “externalidades”. Por isso, um dos preceitos básicos de uma alimentação saudável, que é ter uma dieta com os produtos da estação, não é à toa: ela vai ao encontro dos ciclos da natureza.

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Da mesma maneira, vemos os períodos de reprodução de peixes, mariscos etc. Há até leis que proíbem a pesca nessas épocas. Ah, mas não: há consumidores que querem-porque-querem ter à mesa tal peixe, não importa a época, e, o pior, não importa o preço. Dessa forma, há locais em que se exterminou determinado pescado, pelo simples motivo de não deixá-lo se reproduzir. E que vai ser trazido de outros lugares, distantes, muitas vezes reproduzindo lá o mesmo impacto.

Em ambos os casos, a mudança de hábitos é ação para evitar os danos ao meio ambiente e a nós mesmos. Por sua vez, ela vem de braços dados com a mudança cultural, não há dúvidas. Mas é um processo lento.

Lento, mas pode ser acelerado pela própria natureza, que nos mostra de forma crua, sem peias, as conseqüências dos seres humanos colocarem os desejos e vontades em primeiro lugar, não se detendo no tempo das coisas. Não se detendo no seu próprio tempo, finito, fugaz. Não observando os sinais que a natureza nos envia, a todos, de muitas formas: tudo a seu tempo.

Começamos com uma fábula, terminamos com uma obra ficcional sul-coreana, o belo filme “Primavera, verão, outono, inverno…e primavera” (Kin Ki-duk, 2003), imagem de abertura deste artigo, que pode servir de inspiração para nossa reflexão.


Eliana-Corrêa-Aguirre-de-Mattos-1ELIANA CORRÊA AGUIRRE DE MATTOS

Engenheira agrônoma e advogada, com mestrado e doutorado na área de análise ambiental e dinâmica territorial (IG – UNICAMP). Atuou na coordenação de curso superior de Gestão Ambiental, consultoria e certificação em Sistemas de Gestão da qualidade, ambiental e em normas de produção orgânica agrícola.

 

Créditos das ilustrações

Cigarra e formiga – www.cdn.thinglink.me

Quatro estações: www.watermarked.cutcaster.com

Imagem do filme: www.2.bp.blogspot.com