O sorriso de TYFFANY JANAÍNA (Parte II)

o sorriso de
Este é um detalhe da obra Carregamento da Cruz, do doido pintor Hieronymus Bosch, artista ímpar do renascimento entre o século XV e XVI, seu nome verdadeiro era Jeroen van Aken, ele adorava colocar alegorias e símbolos em suas obras, sobretudo quando falava de pecado. Mas pecado mesmo é ter a cara do Espanta-neném, mais feio que todos os feios acima. O Espanta-neném é mais feio que bater na mãe por falta de mistura na janta. Foto In:https://pt.wikipedia.org/wiki/Lista_das_obras_de_Hieronymus_Bosch#/media/Ficheiro:Bosch_Portement.jpg

O sorriso de Tyffany Janaína é um texto fragmentado e que tem como intuito sensibilizar a nossa visão sobre as péssimas condições de vida, preconceitos sofridos e violência diária que atingem as mulheres trans. As partes da narrativa também vão transitar por outros temas. Deixo para a sagacidade das pessoas que farão a leitura o privilégio, nem um pouco irônico, de discernir se essas linhas são fantasiosas, criativas ou reais.

PARTE II

(…)

Não consegui dormir, apesar de ter voltado para a cama. Passei um tempo naquela típica sensação de tédio e ressaca. Aproveitei para fazer a retrospectiva mental de todas as minhas burradas em 2020 e, claro, decidi não fazer planos para este novo ano. Que preguiça macunaímica!

Fui tomar um banho.

Eu faria suculentos ovos mexidos com fatias de bacon e com tomates secos temperados com orégano e folhinhas de manjericão, mas, de toda esta lista, eu só tinha os ovos. Mesmo assim, confesso, não adiantaria. Quando fui acender o fogão me dei conta que o gás tinha acabado, que droga!

Para que um estabelecimento em Jundiahy estivesse aberto justamente no primeiro dia do ano seria preciso que o mesmo fosse um verdadeiro abrigo de gente sem família, esquecidos e retardatários da noite da virada, pinguços e vagabundos sem paradeiro.

O bar-birosca do Toninho é esse lugar, para além dele somente o Bar do Amaral, mas este me exigiria uma caminhada e, como eu disse, eu estava com uma preguiça macunaímica

Passei um desodorante nos sobacos. Saí.

O Toninho é dono da última cabeça-de-porco aqui do centro, um verdadeiro triunfo que resiste à vigilância sanitária e, claro, investe no jogo do bicho e outras malandragens – e o bom que está apenas três quadras do meu sobradinho alugado.

Colei o cotovelo no balcão e pedi:

– E aí, Espanta-neném, manda um pão com manteiga na chapa, dois ovos mexidos e um café forte que hoje estou de azedo, acho que bebi muito ontem.

– Pô, Henrique, dormiu comigo, é? Seu desgraçado. Não vai desejar feliz ano novo não? – ele me respondeu, do outro lado do balcão.

– Nem se eu tivesse dormido.

Os náufragos da existência, quatro ou cinco pinguços de meia-idade, riram muito.

–Ahahahah, seu vagabundo!

–Ahah, seu galã de filme de terror! – eu disse. O Espanta-neném é a mistura perfeita de Seu Madruga, Pedro de Lara e Toninho do Diabo. Parece que está sempre com fome o coitado.

Aguardei uns instantes, li o meu horóscopo no jornal de anteontem: “Escorpião: cuidado com as garras afiadas do destino neste início de 2021, pensamento positivo e se apegue às lembranças”. Quanta bobagem, quem escreve essas tolices?

E, do meu lugar cativo no balcão, perto da porta de entrada/saída, saquei a quase total ausência de movimento na rua.

Olhei para o fundo da minha carteira e fiquei puto, enquanto fazia as contas do quanto teu iria gastar no gás de cozinha. O país está rico, riquíssimo! Só se for rico em pobreza.

– Está aí, olha só: seu pão, seu café e seus ovos, a linguiça eu mando depois, ahahaha.

– Me atenda direito, Espanta-neném, senão eu não libero a gorjeta.

– Ah tá, acredito! Ontem você estava aqui, Vitarelli, gastou até as moedas, acha que além de feio eu sou trouxa, é isso?

– Prefiro nem comentar – eu disse.

– Acho bom.

– Mas, viu, me diga aí, ontem eu vim aqui?

– Está com amnésia, é?

– Relaxa.

– Você pagou umas cinco rodadas pros pinguços, todos; subiu no balcão; e deu vexame no banheiro.

– Cara, eu não lembro.

– O Toninho lembra, muito.

– E cadê ele, Espanta-neném?

– Dormindo, aquele leitão maturado, ahahaha.

– Ahahaha, eu já falei, só xingue seu patrão na frente dele, isso é sinal de respeito.

– Pode deixar, senhor Henrique Vitarelli, rei dos cachaceiros e príncipe das travestis!

– O que é que você está falando, comeu maconha estragada?

– Isso, você finge demência e eu que estou chapado!

– Rapaz, eu não lembro, o que aconteceu? Acho que já era madrugada quando eu fiquei bêbado…

– Não.

– Mesmo?

– Não era nem três horas da tarde, cuidado, fiofó de bebum não tem dono, ahahaha.

– Cala a boca, Espanta! Mas, sério. Pensei que eu só tivesse ficado chapado meia-noite.

– Meia-noite? Só se foilá na China.

– Bom, me diga, o que eu fiz?

– Bebeu vodca– ele respondeu, enquanto enxugava uns copos perpetuamente encardidos.

– Putz, vodca, eu já não falei pra NÃO me dar vodca?

– Sim, sim.

– Mas você me deu. Muito?

– Um pouco, só duas garrafas.

– Seu filho da mãe, eu disse que não posso com vodca, mas mesmo assim você me deu!

– É que aqui o cliente sempre tem razão.

– Mesmo quando está bebaço?

– É aí que ele tem razão!

– Tá, e aí? O que foi que eu fiz?

Woooooh-woooooh-Woo-WOOOO-Woo-wooooh

No momento em que o esbugalhado do Espanta-neném ia dizer sobre os acontecimentos da tarde passada duas ambulâncias e um carro de polícia rasgaram o silêncio da rua, a toda velocidade,esgoelando sirenes.

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– Vish, deu ruim! – disse um dos bêbados.

– O ano começou com presunto, pode ter certeza – disse outro velhaco, que parecia fazer bochecho com conhaque falso.

– É um país de bêbados e bandidos, não tem mais jeito, ahaha – disse outro, ajeitando a dentadura logo após o riso frouxo.

– Então, o que houve, Espanta-neném?

– Agora não consigo conversar, tenho que ajeitar o troco.

– Não consegue fazer duas coisas ao mesmo tempo? – eu disse.

– Só se me pagar dobrado, Vitarelli pingução, ahaha!

– Coisa-feia, você está saliente, tome aqui a grana, e não me rouba no troco.

– Sou pobre, mas sou honrado e sou lim… – ele gritou.

– Ia falar limpinho, não é, desistiu – eu cortei e disse alto.

Alguns vagabundos acharam graça e sorriram com suas bocas banguelas. E eu pensava comigo o quanto a vodca teria sido capaz de me deixar desmemoriado. Mas eu não poderia sair da espelunca até que tivesse ouvido as fofocas, as minhas fofocas, ou, melhor: as fofocas sobre mim! O problema é que agora eu estava feito osso de galinha na boca daquele cachorro, o Espanta-neném.

(…)

HILDON VITAL DE MELO

‘Jundialmente’ conhecido. Escritor e pesquisador à deriva, mas professor de filosofia, por motivos de sobrevivência.
E-mail: vitaldemelo@yahoo.com.br – Instagram: @camaleao_albino

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