Por mais dourada que tenha sido nossa infância, sempre temos uma lembrança, mesmo que vaga, de algum preceito ensinado pelos nossos pais ou avós. E estes conselhos inocentes foram tomados como sérios, tornaram-se metas ou princípios, chegando a ser divulgados e aplicados em nossos filhos, sobrinhos ou filhos de amigos. Aquilo que antes fora feito e captado inocentemente, agora é difundido com certo apelo fundamentalista, o que ajuda a vivermos emparedados. E por que construímos estes muros em nossas vidas? Vejamos:


Brincava sempre na rua. Corria, jogava futebol, ia nadar no riozinho, em tardes quentes. Era um moleque legal, daqueles em quem se podia confiar, estava sempre com o grupinho de sua idade. No meio da tarde se afastava, impreterivelmente, e voltava para casa: era chegada a hora de se limpar e se preparar para espera pelo pai, que trabalhava na antiga AEG.

No decorrer do dia, em brincadeira com os garotos de sua idade, agia com muita naturalidade. Apesar de sua polidez diferenciadora da gentileza dos demais colegas, nunca se manifestou ou contrapôs à ideia de nenhum dos parceiros. Era de uma paz inconfundível. Tratava a todos com igualdade e retidão. Nenhum desvio de comportamento.

Era diferente de todos, nem parecia daquela rua ou daquele bairro, tamanha sutileza no trato social. Os amigos acham estranho, mas era o jeito dele: educado. E assim foi e é até hoje, adulto grisalho, bom cargo público, filhos, dois netos, sempre atencioso e sempre educado. Respeitoso e parceiro.

Lembro-me bem da tarde em que fomos todos jogar futebol perto do riacho da Valquíria e de lá para o banho no rio. Ao sairmos do banho, molhados e felizes, demos por conta do sumiço da bola. Reviramos os matos rasteiros, derrubamos os matos altos, passamos por cercas de arame farpado, para ver do outro lado, enfim era a nossa bola…a bola do jogo diário. Impossível ficar sem ela.

Todo mundo procurando, nenhum dos colegas em folga: a ordem era achar a bola. Esta passou a ser uma missão grupal obrigatória. Nada apresentou sucesso e voltamos andando pelo caminho da linha férrea, calados e tristes com a perda. Um verdadeiro luto visto que a bola era nossa diversão diária incondicional.

No meio do trajeto de volta ele solta, com sua voz grossa, um sonoro deslize: “acho que foi o Dinei”. Todos nós paramos estarrecidos e surpresos com a afirmação séria e buscamos entender o por quê. Afinal o Dinei era nosso parceiro e esteve no riacho conosco até pouco tempo atrás. Não está agora porque mora no outro sentido deste em que nos dirigimos.

Ai veio a resposta, lógica na cabeça dele, mas incomum na cabeça de muitos de nós, outros. Ele parou, sentou sobre o trilho da Sorocabana e começou a falar: Minha mãe disse que preto sempre vai fazer algo errado. Um dia ele se desmascara. Preto sempre apronta, de um jeito ou de outro. Então, como o Dinei é preto, foi ele.

Ouvimos, calamos, retrucamos, alguns pensaram em ir a casa do Dinei, ele não iria. Ele não se envolveria. Apenas ajudou o grupo a erguer uma imensa barreira entre todos e o pobre menino negro. Barreira esta que alguns ainda mantém, visto que não se constatou nada e, em poucos meses o Dinei se mudou para Louveira sem que descobríssemos se a bola estava com ele ou não.

Mas o muro ficou ali, fincado. Porque a mãe do menino educado ensinava que “preto sempre agiria errado, um dia.”

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E ela era bonita. Bastante bonita. Não era bonitinha. Era bonita mesmo. Suzi era a menina mais bonita da escola. E todos nos gostávamos de ficar perto dela, coisa de meninos bobos e que inocente, entre oito, nove anos, de uma infância limpa e sem preconceitos. Infância comum a de todos os demais, mas cheia de vitalidade e aventuras da idade.

E era Suzi prá cá, e Suzi pra lá; e Suzi vem e Suzi vai; Suzi eu trouxe pra você; Suzi obrigado. Suzi era o centro das atenções. Ela, sempre impecável, com seu uniforme limpíssimo, suas meias brancas e seu cabelo em rabo de cavalo ou em duas chuquinhas, ao lado da cabeça. Bonita e diferente.

E assim correu o primeiro ano, segundo, terceiro e, na metade do quarto ano recebemos da professora um envelopinho que era para abrir em casa. E lá estava um convite para o aniversário da Suzi, num sábado a tarde, numa chácara na Rua do Retiro, daqui quinze dias. Claro, foi uma euforia. Na segunda feira, ao voltar a escola, o problema era esse: quem iria ou não a festa da Suzi.

Da outra sala, da quarta B, alguns também iriam, pois foram convidados. E no meio da garotada todos conversavam sobre o aniversário. Até que um dos garotos da outra sala perguntou: mas quem é essa tal de Suzi? E cada um tentou fechar o quebra-cabeça, dando uma característica da garota. Todos ajudaram a completar a imagem da aniversariante.

De repente, o estranho que questionava sai com uma pérola: Ah sim, Suzi é aquela garota que tem o cabelo ruim? Que tá sempre de rabo de cavalo? O silêncio caiu como um bloco sobre todos. Não me recordo de haver ouvido alguém dizer que era ou que não era. Nem me lembro de alguém ter questionado sobre a observação. Lembro do silêncio impactante.

Neste dia aprendi que cabelo armado, ou crespo, era o tal do cabelo ruim. A Suzi era linda. Perfeita. Mas tinha cabelo ruim. E este muro existe em minha infância, erguido por meio de uma pergunta infantil, de alguém que trouxera a descoberta a público e impregnara seus companheiros com esta sabedoria infinita. Outro muro.


Depois de brincar com nossos carrinhos de rolimã, sentávamos na calçada, na sombra e ficávamos conversando mais um pouco sobre o efeito de nossas curvas, a velocidade, o tamanho de nosso possante veículo. Éramos meninos engenhosos e cuidávamos de nossos próprios brinquedos com muito zelo. Pintávamos nossos carrinhos com escudo de nossos times de coração. Cada bobagem e cada demonstração infantil que me faz rir, hoje. Mas éramos assim e éramos felizes.

As vezes minha mãe nos chamava e dava limonada gelada para todos. Dona Lurdes dava bolachas, Dona Ruth dava bananas, Dona Ondina dava balas. Cada mãe dava aquilo que estivesse mais à mão, para que o grupo se refizesse e ficasse mais um pouco junto, até que entrássemos em nossas casas, para o banho e finalização dos deveres da escola.

Isso era frequente e sempre esperávamos para ver quem seria a mãe que nos confortaria com algo naquele momento de tamanha prostração. E, o melhor: alguma mãe sempre nos socorria. Acredito, agora vendo de longe, que permaneceríamos sentados naquela calçada até que alguém nos chamasse e nos desse algo, porque virou rotina.

Tenho claro na lembrança que certa tarde fomos chamados pela mãe do Vinícius, que estava no portão com uma bandeja e uns copinhos plásticos em cima. Era doce de abóbora, geladinho. Cada um pegou seu copinho, voltou para a sobra que cobria a calçada e começou a comer. Celso e eu éramos bem amigos e estávamos sempre perto, um do outro. Sendo assim, ele me confidenciou: você vai comer? Come o meu também?

Eu respondi que sim às duas questões e perguntei se ele não gostava de doce de abobora; a resposta foi surpreendente e no momento me causou certo receio em haver aceito comer o doce dele também, apesar de minha gula. Ele confidenciou que a mãe dele teria dito para não comer nada que a mãe do Vinicius nos desse, porque ela era espírita.

E agora? Eu comeria o meu doce e o doce dele? Mesmo ela sendo espírita? O que deveria fazer? Como desfazer a dúvida? Comer coisas de mãe espírita iria fazer mal para mim também? Seria prudente não comer? O que faria com meus dois doces? Passei uma tarde de terror. Atazanado. Atrapalhado. E não poderia perguntar em casa, porque se houvesse algum problema em comer doce de espíritas eu estaria frito.

Foi uma das maiores crueldades a que me expus. Não dormi bem, acordei cheio de dores pela falta de sono (mas que me levavam a pensar no doce espírita) e fui erguendo uma enorme muralha contra a mãe do Vinicius, que serviu para emparedá-lo, também. Eles eram um perigo para a humanidade. E o muro se instalou e ali ficou por um bom tempo.

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Muros são plantados em cabeças desprovidas de certas proteções. Ervilhas lançam seus preconceitos e os menos avisados ou despreparados se transformam em coletores destas ideias sem consistência e sem cabimento, divulgando aquele conceito entre os seus. Caso não revisemos nosso aprendizado, manteremos os mesmos preconceitos e os reproduziremos.

Muitas vezes reproduziremos com força, com impacto, numa grande multidão. Noutra, estaremos apregoando em nossas famílias e grupos reduzidos de amigos, como mostro nestes três momentos distintos de minha vida. Não é preciso uma doutrinação sistemática nem um espaço ideal: é preciso ser repassado apenas por uma pessoa crédula pelo receptor. Lógico, sempre alguém considerado do bem.

Esta semana me vi questionado por alguns leitores do artigo anterior que me perguntavam sobre a origem dos muros. E fui buscar nos meus antigos muros as origens deles, que trouxe hoje, neste artigo. Nenhum deles foi construído com aulas, doutrinas, conversações e repetições: foram plantados, numa única vez, por pessoas de minha confiança. Suficiente para causar estragos.

Espero não haver colaborado pela construção de nenhum muro na Vida de alguém. Acredito na sociedade sem muros e destruo tudo aquilo que me separa de alguém, hoje. Mas vale refletir: quantas não são as vezes em que emitimos nossos juízos de valores e imprimimos sinais de segregação por um motivo ou por outro?

Derrubemos os muros. Permitamos a diversidade. Viver assim favorece a oportunidade de amar ao próximo. Sempre. (foto principal psicologorogerio.blogspot.com.br)


AFONSO 2AFONSO ANTÔNIO MACHADO

É docente e coordenador do LEPESPE, Laboratório de Estudos e Pesquisas em Psicologia do Esporte, da UNESP. Mestre e Doutor pela UNICAMP, livre docente em Psicologia do Esporte, pela UNESP, graduando em Psicologia, editor-chefe do Brazilian Journal of Sport Psychology.