_ Meu, cê viu a Veveta vestida de palhaço?

_ Mó barato!!!! Ninguém sabia que era ela…

_Cara, poderia passar 100 vezes por ela e não a reconheceria….

Estes foram os comentários que estamparam conversas no Brasil, logo após o Carnaval, como se o fato da Ivete Sangalo ter se travestido de palhaço, para poder brincar o seu carnaval no anonimato, fosse algo que merecesse tamanho alarde e não provocasse análises mais severas. Afinal, por que ninguém a descobriu naquelas roupas? Qual o segredo disso?

Fico imaginando quantas vezes passamos pela faxineira de nossa escola, sem termos notado a cor dos olhos ou ouvido um murmúrio. Aliás, quantas serão as vezes em que isso se deu e nem notamos a faxineira…esse fenômeno se configura na invisibilidade e tem se repetido cada vez mais.

Seria o mesmo que dizer que Ivete Sangalo ficou invisível, que nossa faxineira é invisível, ambas não têm importância no mundo que vivo. São indiferentes, exercem pouco ou nenhuma atração para que eu me interesse por elas. Lógico que, ao retornar ao inicio desta crônica, pego-me falando de uma ícone da musica popular moderna brasileira e, a partir daí, aquele palhaço que brincava na calçada, passa a ser um PALHAÇO. Alguém famoso e poderoso.

Nossa faxineira se tiver outra função que a destaque dos mortais, será a FAXINEIRA e tudo o que se disse até então, perderá sua força e significado, porque ela é famosa e apenas se camuflou, escondeu-se…uma brincadeirinha que assumiu para mexer com seus amigos.

Mas quantas são as pessoas que vivem ao nosso redor, prestam-nos serviços e habitam nosso universo sem serem notadas ou “sentidas”? Como é o tom de voz de nosso carteiro? Como é o andar de nosso vigilante noturno? Qual entonação tem a fala da caixa do supermercado? Como é o olhar da balconista daquela loja de informática? Isso são elementos que são desvalorizados na contemporaneidade, por não trazerem valores agregados.

São elementos que não nos interessam e não nos dizem respeito, por não comporem nossos pares afetivos, portanto, nada significam. Entram na estatística como mais uma maneira de discriminação, cada vez mais inserida na sociedade.

Desta maneira, a invisibilidade social é um conceito aplicado a seres socialmente invisíveis, seja pela indiferença ou pelo preconceito. Existe estudo acadêmico que conseguiu comprovar a existência da invisibilidade pública, por meio de uma mudança de personalidade. O pesquisador vestiu uniforme e trabalhou oito anos como gari na Universidade de São Paulo, após o que afirmou que, ao olhar da maioria, os trabalhadores braçais são “seres invisíveis, sem nome”.

Tal invisibilidade pode ter nuances diferentes: sociais, culturais, econômicos e estéticos e pode levar a tamanhas dores psíquicas que conduzam a doloridos processos depressivos, sensações de abandono e de aceitação da condição de “ninguém” ou favorecer a mobilização e organização da minoria discriminada, que se junta para poder “sentir-se alguém”.

Conseguimos perceber que alguns motivos são mais fortes para traçar a invisibilidade, mas o status tem enorme participação neste fenômeno; alunos de universidades públicas tem muita dificuldade para enxergar alunos de universidades privadas, por exemplo. A aura da sabedoria, que parece existir nestes, é de tal magnitude que dificulta perceber a existência de seus colegas de graduação, de uma instituição particular. O status parece definir que terá sucesso.

A educação familiar favorece nas questões de relações humanas, subjacentes à invisibilidade. O tratamento ao outro é aprendido e apreendido desde cedo, por uma modelagem social muito potente e poderosa, que aglutina escolhidos e esquecidos em territórios opostos. Nesse segmento, as famílias ensinam com muita precisão quem serve para sua prole e quem deve ser rejeitado ou apagado. Estes últimos se tornarão os invisíveis, certamente.

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Quando pensamos que padrões de beleza sejam marcadores para segregação e invisibilidade, ficamos refletindo em muitos momentos da vida em que optamos pela loira de olhos verdes e não pela negra de olhos castanhos, que aliás nem notamos. Existe uma apropriação deformas adequadas de padrão de beleza, suficiente para estampar a possibilidade de ser visto ou nem ser percebido.

Nota-se que o estigma que gera invisibilidade se espalha por tudo o que está fora dos padrões de vida das classes superiores. Este é o motivo pelo qual os indivíduos que sofrem com a invisibilidade social, geralmente, são os mendigos, os servidores braçais, funcionários de grupos de apoio, usuários de drogas, trabalhadores rurais, portadores de necessidades especiais e homossexuais e prostitutas.

“Existir” é ser importante, é fazer parte do Mundo, é assumir um valor diante de um coletivo, num determinado momento da Vida, portanto, quando isso é negado, o invisível pode iniciar um processo depressivo que avance para outros transtornos psicossomáticos de consequências mais drásticas. Algumas psicopatias se desenvolvem a partir de uma invisibilidade.

O contrário também é verdadeiro: por ser invisível, juntam-se para conseguir “aparecer” perante a sociedade. Esta é a história de alguns movimentos sociais que se solidificam para dar “voz” ou “corpo” aos seus membros; os exemplos desses grupos: MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais sem terra), a Central Única de Favelas (CUFA), fóruns nacionais, estaduais e municipais de defesa dos direitos da criança e do adolescente apontam para uma visível participação após sua criação.

Mais do que isto: no crime organizado temos o mesmo processo de aglutinação de indivíduos que, na individualidade não seriam notados. É o caso das corporações prisionais, tais como o PCC (Primeiro Comando da Capital) e o CV (Comando Vermelho). Na formação do coletivo, encontra-se a representatividade e a legitimidade.

Ao caminharmos pela calçada, a varredora da rua ou o sorveteiro é invisível; não tem direito a uma descrição que o personifique ou o individualize. Tornam-se um ninguém, passam a não fazer diferença na organização de nossos olhares sociais. A invisibilidade social já está cotidianamente estabelecida e a sociedade acostumou-se a ela. Os invisíveis transformam-se nos cidadãos esquecidos pela sociedade.

É nítido o avanço tecnológico da sociedade, o progresso acelera sociedades para um ilimitado descobrir, e parece que nosso mundo poderá evoluir infinitamente por ele.Entretanto, por atrás da cortina de progresso técnico se oculta uma coisificação do ser humano: num ponto de ônibus, numa estação de metrô, num saguão de hotel ou nas calçadas de uma cidade, cada pessoa figura como um estranho, sem real significado para o outro. Os “não lugares” crescentes nas cidades modernas coisificam seus habitantes.

Com nossas relações sociais dilaceradas e um número sempre menor de contatos interpessoais, nossa relação passa a ser pelas redes sociais e isso nos garante mais tempo sozinho, sem conhecer o outro, do nosso lado, levando-nos a ‘coisificá-lo’ e a torná-lo invisível, em nosso Mundo.

É fácil perceber a luta dos doentes, deficientes físicos, idosos, aidéticos, viciados que se esforçam, diariamente, numa sociedade que não se dispõe a aceitá-los; a mesma situação se repete com os imigrantes e minorias internas que procuram pela segurança e garantia de encontrar espaço para conservar sua cultura e seus costumes, sendo que muitas vezes também não conseguem encontrar um lugar, por causa de sua origem. Esta situação favorece ao surgimento de guetos, quer físicos quer morais, e feridas psicológicas que se aprofundama medida que a invisibilidade se amplia.

Pode parecer estranho ou difícil, mas num momento em que tanto falamos de liberdade de escolha, diversidade, autonomia, eleger uma conduta de vida é igualmente cruel. Ser homossexual, crer em religião diferente da “oficial”, opor-se ao regime, pertencer a esse ou outro movimento, ter o corpo tatuado, usar adereços étnicos, usar dialetos ou gírias é uma garantia de ser olhado com desconfiança: suficientes para se tornar invisível.

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O entendimento do parágrafo anterior nos conduz ao pensamento: Quem não está bem posicionado sob esse  critério, vira mera  sombra social; já não nos importamos com o “olho no olho”? Onde está a autoridade que vem de reconhecer o próximo? Percebemos que quando humanizamos a pessoa que está do outro lado do balcão, do telefone ou da internet, concedemos a ela algo precioso: a pessoalidade?

Reclamamos quando somos atendidos pelo sistema eletrônico e dizemos que ficamos desconfortáveis diante da voz emitida pela máquina, mas não damos valor para o tratamento humano dado as pessoas ao nosso redor. Apesar de termos condições e propriedade para assegura que a relação humana está deteriorada, não encontramos o caminho de volta. Aos leitores que assistiram ao filme “ELA”, fica um alerta diante de nossos avanços midiáticos. Nossa realidade aponta que vale muito mais a pena conectar-se a uma pessoa, alguém a quem possamos retribuir um sorriso, apertar uma mão, dar um abraço e conferir a visibilidade que ela merece.

Numa proposta de avaliação, como temos tratado os que nos rodeiam? Fiquemos atentos pois ser IGNORADO é uma das piores sensações que existem  na vida!

INVISIBILIDADEAFONSO ANTÔNIO MACHADO

É docente e coordenador do PPG- Desenvolvimento Humano e Tecnologias da UNESP. Mestre e Doutor pela UNICAMP, livre docente em Psicologia do Esporte, pela UNESP, graduando em Psicologia.