Vivência presente do passado do pai nos traços do rosto da menina. O pai saiu jovenzinho de seu estado natal, mais perto do Espírito Santo que de São Paulo. Tão pequena a sua cidade. Um ponto perdido no sem-fim. Tão pobre a região. A fome. Os utensílios domésticos e as roupas lavadas no rio, para economizar na conta de água. Os olhos dele foram gravando as inúmeras misérias. Sentiu-se empurrado para um lugar distante, onde fosse possível sonhar com um tempo melhor, sem as penúrias que habitavam seu cotidiano.

Na cidade grande, viu as casas com estrutura melhor, o parque industrial e benefícios dos empregados com contrato de trabalho. Tudo isso deu lugar às cenas de indigência. Imaginou-se de passo acertado do lado de cá, conseguindo até mesmo trazer a família. Seria apenas uma questão de tempo.

As oportunidades, no entanto, eram muito mais difíceis do que pensava. Faltaram-lhe escola e experiências profissionais outras. Animava-o, contudo, a moça que se fez sua parceira e lhe assoprava as decepções, todas as tardes, ao voltar das tentativas de emprego.

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A barriga da moça começou a crescer. Era homem de responsabilidade. Precisava cuidar da filha.  Em meio às angústias, ofereceram-lhe ganhos em um desvio. Acabou aceitando. Seria provisório até encontrar o seu lugar em uma empresa. Ensinaram-lhe como se proteger no ilícito. Em pouco tempo, se encontrou atrás das grades. A moça, seu único encanto nestas paragens, o visitava.  Molhou de lágrimas a nenê. Sairia de lá, alcançaria seu rumo, previsto desde que saiu de sua terra.

A moça chegou em prantos, no IML, com a bebê ao colo. Causa da morte: conflito dentro da cela. Autor: ignorado. Motivo: ignorado.

Ao se perguntar à menina, de oito anos, com quem ela se parece, diz, com orgulho, que a mãe comenta que é com o pai, que mataram na cadeia, quando ela era bebê. Sabe que o pai se interessou por ela.

Deus faça que o sonho primeiro dele se concretize na filha. (Foto acima: Lesmariposa)


MARIA CRISTINA CASTILHO DE ANDRADE

Com formação em Letras, professora, escreve crônicas, há 40 anos, em diversos meios de comunicação de Jundiaí e, também, em Portugal. Atua junto a populações em situação de vulnerabilidade social. Acesse o Facebook de Cristina Castilho.