Eu sou doadora de órgãos, de medula óssea, ou de qualquer coisa que possa ser aproveitada após a minha passagem. Não sou apegada. A ideia da reciclagem orgânica me agrada.
Duas citações bíblicas podem servir para encorajar os que ainda não se decidiram: “Com o suor do teu rosto comerás teu pão, até que te tornes ao solo. Pois dele foste tirado. Pois tu és pó e ao pó tornarás”(Gênesis 3, 19) e “Tudo caminha para um mesmo lugar; tudo vem do pó e tudo volta ao pó” (Eclesiastes 3, 20).
A utilidade do órgão está em se manter funcionando para que outra pessoa viva e, já que o reino de Deus não é deste mundo, não precisarei dos meus órgãos seja lá para onde for após o desenlace.
É importante que deixemos claro isso para a nossa família, porque, no Brasil, mesmo com documento firmado pelo falecido revelando a sua vontade de doar seus órgãos, se o membro da família que o acompanha não autorizar por ofício, a doação não se consumará.
Benefícios para a família do doador:
No município de São Paulo, de acordo com a Lei 11.479/94 regulamentada pelo Decreto 35.198/95, a família da pessoa que tiver doado pelo menos um órgão para transplante fica isenta do pagamento de algumas taxas e despesas com o funeral, de acordo com o disposto na legislação.
Basta que a família apresente o documento que comprove a boa intenção do doador do(s) órgão(s), não sendo necessário a comprovação do efetivo aproveitamento do órgão.
Mesmo com o crescimento do número de doadores, a procura ainda é muito maior do que a oferta. Em consequência, apesar de sermos um país com o maior programa público de transplantes, atendemos apenas cerca de 30% da demanda teórica.
Transplante refere-se à transferência de células, tecidos e órgãos vivos com a finalidade de restabelecer uma função perdida.
Há dois tipos de transplantes: o autólogo, cujas células, tecidos ou órgãos são retirados da própria pessoa e implantados em um local diferente do corpo, e o alogênico, que compreende a retirada de material de um doador para ser implantada em outra pessoa (receptor).
A maior parte dos casos envolve a doação oriunda de indivíduos que morreram recentemente (um risco maior para o receptor), embora, alguns órgãos possam vir de doadores vivos que, por razões óbvias, não podem doar aqueles que não estão aos pares.
O maior risco reside na rejeição ao órgão doado. Cada pessoa tem um identificador genético diferente, o que causa uma reação imunológica quando confrontado com um código desconhecido. É a forma como nosso organismo reage aos patógenos. Essa reação acaba causando a destruição do órgão transplantado e, em casos extremos, pode levar à morte.
Neste raciocínio, quanto maior a compatibilidade dos antígenos do doador e do receptor, melhores serão as possibilidades do procedimento ser bem sucedido, pois, mesmo que a associação seja satisfatória, ainda assim há resposta imunológica, por isso, na maioria dos casos, os transplantados necessitam tomar imunossupressores.
Os transplantes mais realizados no mundo são os de medula óssea, rim, fígado, coração, pulmão e pâncreas. Podem ser também utilizados intestinos, córneas, pele, osso, válvulas cardíacas e tendões. Atualmente, equipes médicas internacionais têm obtido sucesso no transplante de rostos e membros como mãos e pernas.
O tempo entre a retirada do doador e a implantação no receptor é crucial para o sucesso da operação e varia de órgão para órgão. O tempo máximo de preservação fora do corpo, do coração e pulmão oscila entre quatro e seis horas. Do fígado, de 12 a 24 horas, e dos rins até 48 horas. Pacientes com sangue tipo O demoram mais para receber órgãos, pois dependem de indivíduos com o mesmo tipo sanguíneo.
A lista de espera é longa e de cunho nacional. É importante salientar que o possível doador deve expressar sua vontade com bastante clareza à sua família, pois, somente os parentes darão permissão para a retirada dos órgãos a serem doados.
Ao lado, a tabela de outubro de 2017 do site da Coordenação geral do Sistema Nacional de Transplantes.
É perceptível que há muita gente aguardando ser agraciado pela caridade alheia.
A Associação Brasileira de Transplante de Órgãos tem um manual de orientação ao paciente em fase de transplante que ajuda muito durante todo o processo: o que esperar, como fazer, a quem recorrer. Visite a página e baixe o manual para mais informações: http://bit.ly/2kzDfU3
O que será utilizado do doador envolve, inclusive, a forma como faleceu. Se houve parada cardíaca, os órgãos ficam comprometidos pela falta de oxigenação, afirma Luiz Augusto Pereira, cirurgião coordenador da Central de Transplantes do Estado de São Paulo.
No caso vertente, só é possível retirar para doação tecidos como: córnea, pele, vasos sanguíneos, alguns ossos e cartilagens. Na hipótese do paciente ainda permanecer no estágio de morte encefálica e o resto do corpo permanecer em atividade, é possível manter o coração batendo até a retirada de: rins, fígado, pulmões, medula óssea, coração e pâncreas.
Alguns transplantes realizados na atualidade são revolucionários nessa área, tais como: multitransplantes (transplantar vários órgãos durante a cirurgia em um mesmo indivíduo), transplantes parciais ou totais de rosto, transplante de cabeça, membros e transferência de bactérias intestinais.
Em 2012, uma menina de nove anos foi submetida com êxito a um transplante de seis órgãos no Hospital Infantil de Boston, Estados Unidos. Desde 2008, a pequena Alannah Shevenell tinha um tumor que se expandiu para o estômago, fígado, pâncreas, intestino delgado e baço, além do esôfago. Atualmente ela passa bem e leva uma vida quase normal.
Segundo Ben-Hur Ferraz Neto, chefe do Programa de Transplantes Abdominais do Hospital Albert Einstein, em São Paulo, transplantes envolvendo vários órgãos ao mesmo tempo, que apresentam maiores riscos, são mais comuns nos Estados Unidos e na Europa.“No Brasil há equipes credenciadas para fazer esse tipo de transplante”, mas ainda são raros.
O primeiro transplante parcial de rosto foi realizado em 2005 para recuperar o rosto de uma mulher que tinha perdido nariz, lábios e queixo. Os médicos implantaram pele, gordura e vasos sanguíneos. Em 2010, o primeiro transplante total de rosto foi também bem sucedido com o enxerto de pele, músculos, nariz, lábios, maxilar superior, dentes, ossos das maçãs do rosto e da mandíbula.
Transplantes de membros como mãos e pernas também já são realidade. A pequena chinesa Ming Li, de 9 anos, estava indo para a escola quando foi atropelada por um trator e perdeu a mão esquerda. Havia esperança de reimplantá-la, mas o membro estava muito ferido. Enquanto o braço se recuperava, a solução foi implantar a mão da garota em sua perna. Durante três meses, a menina teve uma mão saindo do próprio tornozelo. A operação para reunificar a mão ao braço foi um absoluto sucesso. Ming Li já consegue mexer os pulsos novamente, e deve apenas fazer duas cirurgias para melhorar as funções motoras e remover cicatrizes.
Um senhor de 44 anos fez uma cirurgia inusitada em 2006: um transplante de pênis. Pois é. Um acidente o havia deixado com um pênis danificado de um centímetro de comprimento, o que o impedia até de urinar.
O pênis doado era de um rapaz de 20 anos falecido recentemente. Após 10 dias, o fluxo de sangue e a rota urinária estavam estabelecidos e o corpo do receptor aceitou completamente o órgão doado. Quem não aceitou foi sua esposa e após duas semanas os médicos removeram novamente o pênis por “severos problemas psicológicos” da mulher em relação à novidade.
Outros mais afortunados, com mulheres menos exigentes, ou sem elas, foram:
– um Sul Africano de 21 anos que, em 2015, recebeu um pênis doado após uma circuncisão mal feita.
– e um senhor de 64 anos, que devido a um cancro raro, perdeu quase a totalidade do órgão. Ele foi operado em 2016 no Massachusetts General Hospital, em Boston e se recuperou muito bem.
Uma paciente com um caso complicado de infecção por Clostridium, sem chance de fazer transplante de estômago ou intestino, tinha um médico criativo. O Dr. Alexander Khortus coletou fezes do marido da paciente, preparou uma solução salina em que as bactérias intestinais estivessem presentes e “transplantou” as fezes no cólon da mulher. Em breve tempo a biologia fez seu serviço, a diarreia limpou os órgãos e a infecção sumiu.
Em março do ano passado o Instituto Nacional de Saúde e Assistência Excellence em Londres, publicou novas orientações, nomeando transplantes fecais como uma forma reconhecida de tratamento para infecções de Clostridium (essa infecção tem alta mortalidade em casos graves, sobretudo, em pacientes idosos).
Não há limites para uma mãe decidida a ajudar seus filhos. Eva Ottoson era uma mulher saudável, com um útero normal que teve uma filha, Sarah. A menina, no entanto, não teve a mesma sorte: uma rara anomalia genética fez com que ela nascesse sem útero! Agora, já adulta, Sarah se dispôs receber um através de transplante, tentando realizar o sonho da maternidade. O órgão que foi implantado em Sarah é, exatamente, o mesmo que lhe recepcionou: o útero da genitora Eva. Foram realizadas duas cirurgias em 2012: uma histerectomia, destinada a retirar o útero de Eva, e a segunda, mais complicada e arriscada, a implantação do útero em Sarah.
Estudos com transplantes de células pancreáticas saudáveis mostram que o método pode ser, futuramente, uma alternativa ao transplante total do órgão. Ademais, cientistas já conseguiram criar células do fígado a partir de células-tronco da pele que poderiam regenerar partes lesadas.
Células adultas não musculares também já foram “reprogramadas” com sucesso para se tornarem células musculares cardíacas, mostrando ser possível converter qualquer célula do corpo, futuramente, induzindo a regeneração de um órgão ou reparação de defeitos sem a necessidade de transplante.
Fato notável envolve um transplante que causou um rebuliço danado na comunidade médica e ainda nem ocorreu. O médico italiano Sergio Canavero, que coordena o Grupo de Neuromodulação Avançada de Turim, promete transplantar uma cabeça de um corpo doente para um corpo doador saudável no final de 2017.
Estamos no final de 2017 e o fenômeno ainda não ocorreu. Mas a proposta é um pouco assustadora. Fez-me lembrar da história de Frankenstein de Mary Shelley.
Em parceria com cientistas chineses e sul-coreanos, o controverso médico publicou uma série de artigos em que disse ter obtido bons resultados em cirurgias com ratos, macacos e cachorros. Como bons resultados entenda que esses animais viveram de horas a poucos dias com dores excruciantes.
Segundo os cálculos, a cirurgia pioneira deve demorar 36 horas, envolverá uma equipe de 150 profissionais e custará mais de US$ 30 milhões. O paciente será mantido em coma por um mês. Durante esse período, os experts colocarão eletrodos em seu corpo, que darão pequenos choques elétricos para estimular a medula e reforçar as conexões nervosas. Após esse tempo, a cobaia será capaz de falar (com a mesma voz do passado, diga-se) e mover o rosto. Dentro de um ano de fisioterapia intensiva, vai andar e se mexer normalmente, segundo os cientistas envolvidos.
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O italiano já conta com o primeiro voluntário para o transplante de cabeça. O russo Valery Spiridonov, de 32 anos, sofre de uma doença chamada Werdnig-Hoffmann, um tipo de atrofia muscular espinhal. É uma condição rara, marcada pela degeneração de um tipo específico de células nervosas. Ao longo do tempo, o problema leva à fraqueza muscular e o indivíduo deixa de andar, além de ter dificuldades para mastigar, engolir e respirar.
Ele já tem a técnica e o voluntário. Resta apenas um país que aceite hospedar a experiência — os mais prováveis são China e Vietnã.
Durante os estudos e as pesquisas que me orientaram para que pudesse concluir este trabalho, ouso afirmar que o homem, em qualquer tempo de sua história, tenta ser um pequeno Deus. Mas tem a seu favor, a incansável busca por aprimoramento de técnicas através de estudos aprofundados em busca da solução para minorar o sofrimento alheio.
Há, inclusive, profissionais cujo sacerdócio da medicina não lhes impõe limites, não lhes tolhe o direito e a vontade de atingir, em breve tempo, a longevidade em benefício do ser humano. São chips engolidos ou implantados, que tomarão dados do corpo e enviarão à comunidade científica, em tempo real, as reações corporais internas, bem como poderão tratar doenças in loco com quantidades mínimas de medicamentos, diminuindo infinitamente as reações adversas do tratamento.
A medicina está chegando ao big data, uma espécie de “big brother” orgânico, onde nada escapará aos olhares atentos dos pesquisadores fornecendo informações nunca dantes conhecidas, o que permitirá ao médico combater, em tempo real, diversos males, numa cópia perfeita dos filmes de ficção científica que fazem tanto sucesso em qualquer tempo.
Ou será o contrário?
A dúvida já perseguia Aristóteles (384 A.C.): “A arte imita a vida” e Oscar Wilde fez uma contraposição ao grande mestre: “A vida imita a arte muito mais do que a arte imita a vida”. Será que a ordem realmente importa? (Foto acima: cena do filme “O Cérebro que não Queria Morrer, de 1962)
ELAINE FRANCESCONI
Bacharel em Zootecnia (UNESP Botucatu). Licenciatura em Biologia (Claretiano Campinas). Mestrado (USP Piracicaba) e doutorado (UNICAMP Campinas) em Fisiologia Humana. Professora Universitária e escritora.