As vivências com gente miúda me encantam. É gente de coração sem obstáculos, que se maravilha com pequenas coisas e diz com sinceridade. Tenho pena, no entanto, daqueles que se entregam por inteiro ao que oferece, por exemplo, um celular e se perdem das viagens e das paisagens, detendo-se na tela que muda de imediato e não produz as mesmas sensações e recordações. O olhar reduz, recolhe-se e pode atrofiar no uso exagerado da tecnologia. Como escreveu Cecília Meireles em “A Arte de Ser feliz” e gosto de repetir: “Mas quando falo dessas pequenas felicidades certas, que estão diante de cada janela, uns dizem que essas coisas não existem, outros que só existem diante das minhas janelas, e outros, finalmente, que é preciso aprender a olhar, para poder vê-las assim”.
Mas voltando aos pequeninos que fazem parte do meu dia a dia: a menina me entregou um desenho azul com declaração de ternura. Primeiro, dobrou o papel em forma de casa com porta de duas folhas. Um trinco em formato de coração. Duas figuras, ao se abrir a porta, com pouca diferença de tamanho: ela e eu. Olhos bem abertos e lábios com sorriso. Embora 54 anos nos separem, a garota com nove e eu com 63, fez-me parecida com ela.
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Provocou-me alegria. Penso que, de certa forma, manifestou que se sente à vontade comigo, como em casa. Por 30 anos, atuei em sala de aula, mais próxima desse povo que cresce sem a gente perceber e, nos reencontros, fortalece o riso. Na coordenação da Casa da Fonte, o convívio com crianças e adolescentes não é como em sala de aula, embora o carinho e a preocupação sejam os mesmos. Essa proximidade de sentimento, no entanto, me fortalece como na “Arte de Ser Feliz” de Cecília Meireles: “Houve um tempo em que minha janela se abria para um terreiro, onde uma vasta mangueira alargava sua copa redonda. À sombra da árvore, numa esteira, passava quase todo o dia sentada uma mulher, cercada de crianças. E contava histórias. Eu não podia ouvir, da altura da janela; e mesmo que a ouvisse, não a entenderia, porque isso foi muito longe, num idioma difícil. Mas as crianças tinham tal expressão no rosto, e às vezes faziam com as mãos arabescos tão compreensíveis, que eu participava do auditório, imaginava os assuntos e suas peripécias e me sentia completamente feliz…” É assim que eu desejo continuar: com portas abertas para o mundo das crianças.
MARIA CRISTINA CASTILHO DE ANDRADE
Com formação em Letras, professora, escreve crônicas, há 40 anos, em diversos meios de comunicação de Jundiaí e, também, em Portugal. Atua junto a populações em situação de vulnerabilidade social. Acesse o Facebook de Cristina Castilho.