Memória: A seiva da Terra, o sangue da História

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Povo jundiaiense! Irmãos de chão e céu, de suor e esperança! Aqui, sob este mesmo Sol que já queimou as costas dos bandeirantes e secou o pranto das mães indígenas, uso a memória e trago palavras não como quem ensina de cátedra, mas como quem confessa à beira do fogo, com as mãos sujas da terra de Jundiaí.

Sou professor? Sim, na medida em que a vida nos dá lições de ferro e fogo. Filósofo? Se por isso se entende aquele que se espanta com o milagre cruel e belo de existir. Historiador? Apenas um catador de cacos, um garimpeiro de lembranças sepultadas sob a poeira oficial. Escritor? Ah, talvez apenas um grito (des)organizado, um suspiro transformado em tinta.

E hoje, o que me arde nas entranhas, o que lateja nas fontes deste crânio (palavra fria, vazia, que não capta o peso da pedra, o gosto do sal), é a memória. Não a memória das vitrines, dos livros engomados, dos discursos de bronze. Não!

Falo da memória viva, pulsante, que corre nas veias como o sangue negro e doce da cana, que impregna as paredes das casas como o cheiro do café torrado, que está no sulco da enxada, no gemido da viola, no silêncio pesado das senzalas invisíveis que ainda carregamos.

Perguntar-me, com a aspereza da serra ao fundo: O que é a história sem esta memória? 

Um cadáver embalsamado! Um esqueleto sem carne, sem calor, sem o odor do suor e da luta. Os grandes feitos, as datas pomposas, os nomes dourados nos arcos dos triunfos… tudo isso é casca. Casca seca, que o vento do tempo leva.

O que fica? O que realmente conta? É a lembrança do velho contando causos, com os olhos perdidos no passado que dói. É a receita da quitanda guardada num caderno manchado de gordura, herança de avó que nunca assinou o nome. É o modo como a comunidade se junta no mutirão, eco de solidariedades ancestrais. É a raiva contida no olhar do jovem ao passar pela casa-grande decadente.

Essa memória, é a nossa alma coletiva. É o fio que nos liga aos que pisaram este chão antes de nós, que sofreram, amaram, plantaram, colheram (ou não colheram), lutaram (muitas vezes em silêncio). É o mapa invisível que nos orienta, o aviso contra os mesmos abismos, o alento de saber que não estamos sós na travessia. Quando a esquecemos, quando a deixamos mofar nos porões da alma, quando trocamos sua verdade áspera e quente pela versão polida dos vencedores… então nos tornamos órfãos. Órfãos de nós mesmos.

Vagamos como sombras, sem raiz, sem rumo, fáceis presas para os vendilhões de ilusões, para os tiranos de plantão que sempre querem apagar o passado para reinventar o futuro à sua imagem perversa.

Vejo, com olhos de historiador que vasculha não só arquivos, mas a alma das ruas, que esta memória viva está ameaçada. Pelo ruído vazio do efêmero, pela pressa desalmada, no desprezo pelo velho, pelo “simples”, pelo “local”. Querem nos vender uma história pasteurizada, global, sem cheiro de terra, sem grito de dor, sem riso genuíno. Uma história que não é nossa. Mas resistimos! Como a paineira centenária que teima em florir.

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Resistimos nas rodas de conversa, nos terreiros, nas festas à porta das igrejas, na sabedoria das parteiras, na coragem dos que guardam as fotografias desbotadas e as cartas de amor. Cada gesto de recordação, cada história contada ao pé do fogão, cada lamento entoado na despedida, cada nome de rua que evoca um herói do povo, não um general distante.

Tudo isso é um ato de resistência. É escrever a história verdadeira, a história de baixo para cima, com os cotovelos e os joelhos, com o coração e a fome. Não a deixe morrer na boca do silêncio ou na gaveta do esquecimento. Pois sem memórias, não há história. Sem história, não há identidades. Sem identidades, não há culturas. Ou ao contrário? A dúvida!(Foto: Bebedouro da Vila Arens anos 1960/Acervo: professor Maurício Ferreira)

JOSÉ FELICIO RIBEIRO DE CEZARE

Mestre e doutorando em Ensino e História de Ciências da Terra pelo Instituto de Geociências da Unicamp. Membro da Academia Jundiaiense de Letras. Pesquisador, historiador, professor, filósofo e poeta. Coeditor da Revista literária JLetrasPara saber mais, clique aqui. Redes sociais: @josefelicioribeirodecezare.

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