Ecos de um SALTO: Coragem, compreensão e revolta

salto

O dia amanheceu igual aos outros, mas ela sabia que não era. À primeira vista, as ruas ainda sussurravam seus ruídos de sempre, os passos apressados do vizinho, o latido do cão do outro lado da calçada, o cheiro insistente do café sendo coado na casa ao lado. Mas, dentro dela, algo havia mudado. Não muito. Só o suficiente. O bastante para empurrá-la até a beira de si mesma. E ali, entre o medo e o desejo, ela deu o primeiro passo: escolheu o salto.

Essa cena poderia ser de qualquer um. Talvez tenha sido sua. Ou talvez ainda esteja por vir. O fato é que a coragem raramente vem com trombetas. Quase sempre, ela chega disfarçada de silêncio. E, às vezes, de desespero. Tomar uma decisão corajosa é, frequentemente, não saber ao certo o que se está fazendo, mas fazê-lo mesmo assim. É um movimento interno e íntimo. Um salto que exige honestidade brutal com nossos limites, nossos medos e nossas ilusões.

A coragem, nessa crônica da existência, não é um ponto final, mas um ponto de partida. Ela inaugura o risco, o desvio, o abalo. Corajoso é quem aceita perder o chão em nome de um horizonte. Mas coragem não é ausência de medo — é convivência com ele. É diálogo com o desconhecido. É o susto transformado em impulso. É o grito que se transforma em gesto. Em outras palavras, é o primeiro ato de fé em si mesmo.

Nietzsche dizia que “aquele que tem um porquê enfrenta qualquer como”. Mas o que sustenta esse porquê senão a coragem de encarar-se sem máscaras? De admitir a própria fragilidade sem que isso paralise? Essa coragem que se manifesta em um “sim” dito diante de um “não” gritante do mundo, essa é a matéria-prima das transformações.

Mas coragem, sozinha, não sustenta o caminho. Há que se ter envolvimento. Há que se grudar ao processo com a aderência de quem sabe que abandonar seria regressar à estagnação. Envolver-se é, portanto, muito mais do que agir: é comprometer-se. É colocar não apenas a mente, mas também o corpo e o coração em movimento.

A aderência àquilo que se escolheu — um projeto, um amor, uma causa — exige renúncias sutis. Exige tempo, paciência e persistência. Quando nos envolvemos verdadeiramente, deixamos de apenas querer e começamos a sustentar o querer com ação cotidiana. E é nesse ponto que a vida começa a responder: os frutos vêm não do desejo, mas do cuidado com o plantio.

Se coragem é o início, envolvimento é continuidade. E continuidade é o único caminho possível entre a semente e a colheita. É na aderência que a coragem encontra morada. E é nela também que se aprende a compreender.

A compreensão talvez seja a etapa mais silenciosa dessa jornada. Diferente do saber, ela não grita certezas, mas sussurra possibilidades. Compreender é abrir mão da pressa, dos julgamentos apressados, das expectativas rasas. É mergulhar no outro — e em si — com disposição verdadeira de escuta.

Compreensão não é conivência, tampouco indiferença. É acolhimento. É o espaço onde o conflito não precisa virar guerra. Onde o erro não precisa virar sentença. Onde a dor não precisa virar exílio. Mas compreender exige uma coragem ainda mais rara: a de se despir das próprias razões, pelo menos por um instante. De silenciar os próprios argumentos para, enfim, ouvir o outro — e o mundo — em suas muitas vozes. E, inevitavelmente, esse processo leva à próxima etapa: a revolta.

Sim, compreender de verdade leva à revolta. Porque ao entender o mundo com mais profundidade, é impossível permanecer passivo diante de tantas ausências, injustiças, desigualdades e silenciamentos. A verdadeira revolta nasce da empatia lúcida, não da raiva cega. É quando se percebe que, por trás do sofrimento alheio, há sistemas que o perpetuam. E, diante disso, torna-se intolerável permanecer imóvel.

A revolta é o grito da alma que já não aceita o inaceitável. Não se trata de destruir, mas de não compactuar. Trata-se de transformação. Paulo Freire já dizia que “quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser opressor”. A revolta lúcida impede que isso aconteça. Ela empurra para a ação consciente, para o comprometimento ético, para a reconstrução.

E aí, depois do grito, do choro, do cansaço — vem, às vezes, a realização.

Realizar-se é um verbo que carrega mais do que sucesso. Ele carrega sentido. Não se trata apenas de alcançar metas ou cumprir objetivos. Trata-se de reconhecer-se inteiro no que se fez. De olhar para trás e perceber que o salto valeu a pena. Que a coragem foi válida. Que o envolvimento não foi em vão. Que compreender e se revoltar não foram apenas etapas de dor, mas partes de um processo maior de construção de si mesmo no mundo.

A realização é o ponto em que passado e presente se dão as mãos. É quando a vida, por um instante que seja, parece alinhar-se com a verdade interna de quem a vive.

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Não é estática. Não é permanente. Mas é real. E, às vezes, basta esse pequeno instante de realização para sustentar toda uma existência. No fim, talvez viver seja isso: um eterno salto. Um processo contínuo de coragem, envolvimento, compreensão, revolta e realização. Ciclos que se repetem, que se sobrepõem, que se entrelaçam. E que, juntos, constroem uma existência que vale a pena.

Então, se hoje o dia amanheceu igual aos outros, talvez ainda assim algo tenha mudado. Talvez em você. Ou talvez em mim. E, se for assim, que possamos reconhecer esse instante. E dar um salto.(Foto: Gemini)

AFONSO ANTÔNIO MACHADO 

É docente e coordenador do LEPESPE, Laboratório de Estudos e Pesquisas em Psicologia do Esporte, da UNESP. Leciona, ainda, na Faculdade de Psicologia UNIANCHIETA. Mestre e Doutor pela UNICAMP, livre docente em Psicologia do Esporte, pela UNESP, graduado em Psicologia, editor chefe do Brazilian Journal of Sport Psychology.

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