Era manhã de segunda-feira, e os corredores da escola já respiravam pressa e cansaço. Na sala dos professores, um bule de café lutava para manter o ânimo de todos de pé. Havia ali um tipo de silêncio que não era ausência de voz, mas saturação de tudo o que já foi dito e não adiantou. Júlio, professor de História, folheava os papéis da reunião pedagógica anterior. Anotações rabiscadas, apontamentos de metas, registros de atendimento, tabelas de inclusão. Tudo muito bonito no papel. Tudo muito longe da realidade que o aguardava a três portas dali.
O quadro branco da sua sala ainda guardava resquícios da aula de sexta. Um mapa da América Latina desenhado com urgência, setas que indicavam a rota da colonização, palavras que quase ninguém entendeu, mas que foram copiadas com afinco. Do fundo da sala, Pedro – que tinha laudo, pasta azul e promessas de atendimento especializado – olhava fixo para o teto. Júlio lembrava-se bem da cena, porque naquele dia tentou, pela terceira vez, trabalhar com a estratégia de pares, como sugerido na formação em “Inclusão Escolar na Prática: Desafios e Soluções”.
Mas como criar uma estratégia eficaz quando não se tem um segundo professor, quando não se tem material adaptado, quando sequer se tem tempo de planejar uma aula que vá além da urgência de entregar conteúdo? Ensinar já foi um verbo de esperança. Hoje, é um verbo conjugado entre o esgotamento e a culpa.
Todos falam em inclusão. É bonito falar de inclusão. É necessário, sim. Mas inclusão sem estrutura, sem formação adequada, sem escuta ao próprio professor, é um discurso de cartilha, é um castelo construído sobre areia movediça.
Porque enquanto o país brada pela inclusão dos alunos, esquece de incluir o professor em seu próprio ofício. De respeitar o que ele sabe. De perguntar o que ele sente. De reconhecer que ele também é sujeito. Que ele também precisa ser incluído.
Júlio não tem especialização em Educação Especial. Nunca teve formação em Libras. Não conhece as nuances do Transtorno do Espectro Autista. Mas lhe foi dito que deveria acolher todos, adaptar tudo, garantir o desenvolvimento integral de cada estudante. E ele tenta. Deus sabe como ele tenta. Mas ninguém pergunta o que ele precisa. E a eterna e enorme pergunta: quem acolhe o acolhedor?
A pedagogia da empatia virou um caminho de mão única. Espera-se que o professor compreenda o aluno com déficit cognitivo, que reconheça o transtorno de comportamento, que adapte atividades para aquele que está no processo de alfabetização e, ao mesmo tempo, para aquele que tem altas habilidades. Mas quem adapta a carga horária do professor? Quem flexibiliza os prazos? Quem dá suporte emocional?
Na prática, a sala de aula virou um campo de batalha silenciosa. O professor, armado apenas com seu quadro, seu giz ou seu projetor meia-boca, enfrenta uma realidade que exige muito mais do que ele pode dar. E a cada tentativa frustrada, a culpa bate à porta. E não vem sozinha: traz junto a sensação de fracasso, a exaustão crônica e, mais tarde, o adoecimento silencioso que leva muitos a deixarem a profissão.
Júlio já viu colegas brilhantes pedirem exoneração. Não foi por falta de vocação. Foi por excesso de abandono. E há uma ironia cruel em tudo isso: espera-se que o professor seja um agente de transformação social, enquanto ele próprio é mantido à margem do respeito social. Espera-se que forme cidadãos críticos, quando ele mesmo não tem tempo para pensar. Espera-se que atue com excelência, quando não lhe oferecem nem o básico.
A sala de Júlio tem 32 alunos. Três têm laudo. Dois estão em processo de avaliação. Um é refugiado e não fala português. Cinco vivem em condição de vulnerabilidade social. Um está em medida socioeducativa. Todos precisam de atenção. Todos são legítimos. Todos têm direito. Júlio sabe disso. Mas sente que está virando estatística.
E, entre uma aula e outra, um planejamento improvisado no domingo à noite, uma prova refeita às pressas e uma tentativa de fazer com que Pedro acompanhe a matéria, ele pensa: quem foi que disse que ser professor era um ato de amor? Talvez seja. Mas amor não sustenta ninguém sem estrutura. Amor não substitui salário justo, formação continuada, equipe multidisciplinar, diálogo institucional.
O problema é que o professor foi transformado em uma espécie de missionário laico. Espera-se dele altruísmo, dedicação irrestrita, resiliência quase sobrenatural. Mas não se aceita que ele diga “não sei”, “não consigo”, “preciso de ajuda”. E, assim, ele vai se apagando. Não nas provas. Não nas aulas. Mas em si.
Na hora do recreio, Júlio tomou seu café frio. Sentou-se à mesa e ouviu a conversa da coordenadora com outros professores. Falaram sobre metas, sobre a última formação on-line, sobre as novas exigências do plano municipal de educação. Ninguém falou sobre a saúde mental dos docentes. Ninguém perguntou como ele estava.
Talvez ninguém tenha notado que ele chorou no carro, antes de entrar. Talvez nem ele mesmo tenha notado que está adoecendo. Porque ensinar tem sido também aprender a engolir o choro, a silenciar a dor, a carregar o peso de uma escola que não vê seus pilares ruírem porque só olha para o teto. Inclusão é um princípio lindo. Mas exige base sólida. E a base, hoje, está em ruínas.
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Ao final do dia, Júlio escreveu no diário de classe: “Aula realizada conforme planejado. Alunos participativos.” Era mentira. Mas era o que se esperava. Afinal, ninguém quer ler a verdade: que o professor está cansado, que a inclusão virou obrigação unilateral, que a escola é um mundo onde todos cabem, menos o próprio professor.
E ele, invisível como sempre, voltou para casa, já pensando na aula de amanhã. Porque, apesar de tudo, há algo nele que insiste. Que resiste. Mas até quando?

AFONSO ANTÔNIO MACHADO
É docente e coordenador do LEPESPE, Laboratório de Estudos e Pesquisas em Psicologia do Esporte, da UNESP. Leciona, ainda, na Faculdade de Psicologia UNIANCHIETA. Mestre e Doutor pela UNICAMP, livre docente em Psicologia do Esporte, pela UNESP, graduado em Psicologia, editor chefe do Brazilian Journal of Sport Psychology.
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