Trabalhar em redação de jornal nos anos 90 e buscar a verdade era uma aventura — não daquelas cheias de conspirações cinematográficas, mas da vida real, onde o drama vinha por meio da estrutura: o celular era uma ficha da velha Telesp (paga por nós, naturalmente), o carro funcionava só quando o motorista estava de bom humor e, claro, havia o fantasma que rondava todas as redações: a falta de espaço na edição do dia seguinte — ou pior, o editor cortar a matéria e deixá-la sem pé, nem cabeça e, às vezes, sem alma.
Em 1992, a Câmara Municipal de Jundiaí realizou a primeira audiência pública. Era à tarde. Chego no jornal e encontro no meu gancho — cada repórter tinha o seu, como cabides do desespero — a pauta do dia, datilografada pelo chefe de reportagem, Luiz Alberto Lessi. Só um assunto. Fiquei feliz por cinco minutos… até quase apanhar horas depois. No pé da lauda, um bilhete: “Ligue para mim na escola. LAL.” Quem já leu minhas histórias sabe: Luiz era, simultaneamente, chefe de reportagem e diretor de uma escola estadual — uma espécie de super-herói multitarefa, porém sem capa.
Ao ligar, ouvi a voz dele, meio sussurrada, como se falasse de dentro de um filme noir:
— “Discretamente, você vai acompanhar a audiência. E já combinei com o Wilson Martins (assessor de imprensa da Câmara). Você e o fotógrafo vão acompanhar uma reunião dos vereadores com o governador Fleury. Não sei o teor. É exclusivo. Só nosso. Veja com o chefe do departamento fotográfico, o Mário Vassalo, para a Valéria ir com você.”
Desliguei com medo de que o telefone explodisse em fumaça, só para criar um clima dramático.
Problema: era uma sexta-feira e eu não estava minimamente vestido para entrar no Palácio dos Bandeirantes. Camiseta branca, colete com capuz cinza com cordões fluorescentes, jeans cintura alta, cinto de metal e um All Star mais rasgado que redação em fechamento.
— “Luiz, eu não estou composto para isso…”
E ele, didático como uma régua de professor:
— “Jornalista não tem essa. Vai assim mesmo!”
Sim, senhor.
Fui com a Valerinha para a Câmara. A audiência tratava da Casa de Saúde Dr. Domingos Anastasio, que queriam transformar em Utilidade Pública Municipal. Debate tranquilo, nada demais. Depois, seguimos para a portaria para esperar o carro. Wilson apareceu:
— “Não vai dar para vocês dois irem ao Palácio.”
Eu, íntima derrota fashion, topei na hora: Valéria iria. Eu entrevistaria os vereadores depois. Tudo resolvido — achei eu, inocente criatura.
Voltei para a redação. Tarde fria, estranha, silenciosa… até o Luiz Lessi chegar. Assim que pisou, olhou para mim e perguntou:
— “O que você está fazendo aqui?”
Expliquei sobre meus trajes, o aviso do Wilson, tudo.
Ele, berrando mais do que o telex imprimindo sem parar:
— “Não interessa! Era para você ter ido! Se não coubesse você e a fotógrafa, você tirava a fotógrafa e ia você!”
Clássico momento em que as máquinas de escrever paravam, mas ninguém ousava levantar os olhos.
Continuei quieto, mastigando meu ódio em modo silencioso, datilografando a matéria da audiência. Por volta das 20h, chega a Valéria — que já é branca, mas estava translúcida. Mariozinho e o fotógrafo Nilson Cologni, no laboratório, foram chamados por ela. Momentos depois, os três vão até a mesa do Luiz. Ali começou a Missão Impossível – Versão Redação.
Val contou que foi sozinha em um carro, vereadores em outro. Chegou, fotografou, ouviu o pouso de um helicóptero, registrou manobras — beleza. Quando se virou, viu os vereadores entregando um documento ao governador. Com a teleobjetiva, fotografou tudo de longe.
Concluída a reunião, uma passadinha no toalete. Ao sair, do lado de fora, um dos participantes perguntou se ela havia fotografado a entrega do documento e que não seria interessante a divulgação. Valerinha respondeu que não dava para identificar nada, pois a foto foi registrada com muita distância. Mentiu com charme e instinto de sobrevivência jornalística.
De volta à redação, Nilson, mago das fotos e dos reveladores também, correu para o laboratório com Mario e Valéria. O objetivo: descobrir o que estavam tentando esconder. Os minutos viraram horas. Eu, ainda atravessado com a bronca, arrumava gavetas para não arrumar briga.
Então, eles saíram — e triunfalmente revelaram o documento ampliado e legível nas mãos do governador. Era a indicação da bancada partidária para nomear o médico Antônio de Paulo Soutello Cordeiro no comando da ERSA. Um furo de reportagem. Nosso. Só nosso.
Para tentar recuperar crédito moral, virei para o Luiz e disse:
— “Na audiência pública de hoje, discutiram transformar a Casa Dr. Domingos em utilidade pública. O Dr. Cordeiro foi citado.” (Até hoje não lembro se ele estava lá naquele momento ou citado, mas funcionou). Completei, que no sábado era meu plantão e buscaria um currículo dele. Luiz sorriu — aquele sorriso oriental que significava “você vive por mais um dia”.
Estrategicamente, o editor-chefe Alcir de Oliveira e Luiz Lessi, decidiram segurar o furo. No dia seguinte sairia minha matéria sobre a audiência; domingo, a manchete bombástica da nomeação. Sábado cedo, procurei o médico na lista telefônica — era como procurar “Silva” no Brasil. Na terceira tentativa, bingo. Ele estava viajando, mas consegui o telefone do local em que estava, liguei, entrevistei, e preparei a suíte.
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No domingo, capa com foto gigante da mão do governador segurando o documento e o close em um dos membros da bancada. Página 2, matéria com detalhes; página 6 com meu texto e mini bio.
No mundo AW (Antes do WhatsApp), a repercussão só viria na segunda. Ninguém comentou nada. Nem telefonema, nem ameaça de demissão — nem um xingamento anônimo. Um silêncio suspeito. Na terça, fomos todos à sessão da Câmara. Parecia festa de fim de ano de repórteres: cada um com aquele olhar de “nós fizemos jornalismo de verdade”. E alguns vereadores nos olhando como se estivessem furando nossos bonequinhos de vodu com agulhas de injeção ou de caneta esferográfica.
E assim fechamos mais um capítulo das redações heróicas de um tempo sem internet, mas com muita adrenalina, improviso… e All Star furado.
(Por motivos óbvios, os nomes dos vereadores foram suprimidos. Apesar de o desfecho ter feito bem à saúde pública.) Foto: Valéria Gonçalves.

MIGUEL ÉDI GOMES
É jundiaiense, tem 54 anos. É formado em jornalismo pela UniFaccamp e atualmente faz parte da equipe da Assessoria de Imprensa da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo.
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