A morte do moço não constou na necrologia. Foi destaque na página policial, no dia seguinte à madrugada de seu assassinato.
Sobreviveu durante 20 ou mais anos agarrado à droga e foi ela que o empurrou para os pequenos furtos. A droga, os furtos, o tráfico imediato pela droga, a cadeia, a rua… Sequência doentia, até que os ferimentos no tórax o levaram. Foi a maneira que se arranjou para sobreviver e o passo precoce que o levou à morte.
Na foto, o mesmo olhar tristonho e desesperançado. Carregava as contemplações funestas da infância. Viu a mãe, que exalava álcool, com o corpo esfacelado na linha de trem. Ela que o carregara e lhe dera, nos momentos de lucidez, o aconchego que não encontrou mais. Tão menino para poder impedir essa tragédia! Creio que a sua essência se esmigalhou. Por mais que tentasse juntar pedaços, havia as rachaduras por onde escorria amargor. Meses mais tarde, acompanhou o sepultamento do pai, que como a mãe transpirava odor etílico, agredido com fúria na disputa por um quartinho de quintal. Mais um tempo e, no cárcere, reencontrou o assassino do pai. Colocou nele o ódio que trazia pela morte de quem poderia tê-lo amado e o abateu. Aumentou a pena, mas não cresceu no crime, na legalidade, no perdão. Era de pedra em pedra de crack. Cumpriu longo período da sentença. Na primeira saidinha, não retornou. Quarenta e cinco dias depois: da rua para uma gaveta no cemitério. Seria briga de rua, vingança, disputa por pedra, dívida contraída sem perspectiva de acerto?
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A mãe e o pai, quando pequeninos, por certo também experimentaram tropeços. Uma das famílias foi assolada pela fome. Percorriam, na década de 60, os restaurantes para recolher, em suas vasilhas de cera, os restos de comida que ficavam nos latões à espera do caminhão de lixo. Naquela época, para “acalmar” as angústias e o desalento se destacava o aguardente. Hoje, além dele, existem, com facilidade, as substâncias ilícitas.
E a vida de tanta gente segue na decadência, que gera o embrutecimento, e há olhares raros com atitude de mudança para o cenário. O moço, que conheci na adolescência, permanece na minha reflexão: os cuidados, que o envolveram foram pequenos demais para a crueldade que vivenciou. Como sarar uma ferida purulenta e em hemorragia na alma?
Peço a Deus pela alma dele e para que me salve da indiferença. (foto principal: ipgavea.org)
MARIA CRISTINA CASTILHO DE ANDRADE
Com formação em Letras, professora, escreve crônicas, há 40 anos, em diversos meios de comunicação de Jundiaí e, também, em Portugal. Atua junto a populações em situação de vulnerabilidade social.