Em novembro de 2010, fiscais do Ibama – Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Renováveis, recebeu denúncia de que uma senhora de 75 anos de idade, moradora na cidade de Cajazeiras, interior do Estado da Paraíba, mantinha sob guarda, em situação ilegal, um papagaio de estimação de nome “Leozinho”. Um fiscal do órgão foi até o local e constatando a situação de ilícito ambiental, lavrou um auto de infração, notificando a dona da ave, que retornaria para fazer a sua apreensão do bichinho, conforme manda a lei ambiental: animais silvestres não podem ficar em cativeiro doméstico. Inconformada com a possibilidade de ficar longe do seu papagaio, com quem já convivia há mais de 15 anos, Dona Izaura, peticiona em juízo uma medida liminar para que a pretendida apreensão não prosperasse.

O juiz decide atender ao pedido, resolvendo que o papagaio deveria ficar com a D. Izaura, ainda que a sua procedência não vinculasse um criadouro autorizado. O Ibama, discordando da sentença, recorre ao TRF-5, Tribunal de Justiça Federal da 5ª Região, o qual decide manter a decisão do juiz de primeira instância, concordando que o papagaio deveria continuar sob a guarda da sua dona. O Ibama, persistindo no inconformismo do acordão, recorre ao STJ – Superior Tribunal de Justiça, o qual decide em 2017, em sede de Recurso Especial nº 1.389.418 – PB (2013/0211324-4, portanto, última instância, que o papagaio deveria realmente permanecer com Dona Izaura, como já haviam decidido seus pares nas apreciações anteriores. O argumento da Justiça para decidir pela manutenção do papagaio em poder de sua dona foi de que a ave já estava habituada ao ambiente doméstico e a sua possível reintrodução em ambiente selvagem não seria mais possível e nem o mais apropriado, pois que não conseguiria mais se adaptar e sobreviver no ambiente natural. Também não resolveria a sua eventual destinação a instituições de proteção de animais, pois que já havia criado vínculos de estimação com D. Izaura e sua família e seria sofrimento para a idosa e para o papagaio, separá-los do convívio. Nada mais justo, quanto a decisão judicial de deixar o papagaio com sua dona, mérito que foi fundamentado através da aplicação do Princípio da Razoabilidade, como medida de Justiça. Inicia-se a polêmica.

Como era esperado, surgiram comentários contra e a favor da decisão judicial. As manifestações favoráveis em manter o papagaio com sua dona, alegaram que o fato era irrelevante no seu contexto e que privar uma senhora idosa e sua família do convívio com o papagaio, era injusto. O convívio com a ave já vinha de longos anos, sendo prazeroso para todos e alterar esse quadro poderia redundar em sofrimento para os envolvidos, humanos ou ave. Alegaram exagero do Ibama na abordagem do fato, já que muitos crimes ambientais são cometidos e o poder público nem sempre tem se preocupado em fiscalizar de forma tão incisiva, como no caso do “Leozinho”. É sabido que ocorre uma infinidade de crimes ambientais muito mais graves e complexos e seus autores quase nunca são responsabilizados. Reforçam o sentimento de que o Ibama deveria manter a mesma postura de rigidez no combate aos crimes ambientais graves, agindo da mesma forma que agiram no caso da D. Izaura. Para aqueles que discordaram da decisão judicial, os mais legalistas, manter a ave com a sua dona era privilegiar o crime ambiental, desconsiderar o que manda a lei, contribuir para a prática criminosa do tráfico de animais e incentivar a impunidade nos crimes ambientais. A lei deve valer para todos e que estando comprovada a autoria e materialidade do crime, o rigor da norma deveria ser aplicado e respeitado, até como forma de inibir eventuais outras condutas envolvendo tráfico de animais. Alegaram ainda, que por trás daquela simples situação, de guarda irregular de ave, estaria ocorrendo uma série de crimes, não só contra o meio ambiente, mas contra a sociedade em geral, os quais se mantém ocultos aos olhos da lei.

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Controvérsias à parte e guardado o devido respeito às opiniões distintas, o certo é que o caso do papagaio “Leozinho” é o exemplo mais corriqueiro de que o tráfico de animais silvestres, ainda é uma infeliz realidade nos dias atuais, com comprovada intensidade de ocorrência no país, sendo uma das maiores atividades lucrativas e ilícitas no mundo, só perdendo em números, para o tráfico de drogas e de armas.Talvez a solução resida não na simples aprovação ou reprovação do que foi decidido no caso do papagaio, mas a adoção de critérios e estratégias mais definidos de combate ao tráfico de animais silvestres. Essa modalidade de crimes contra o meio ambiente, tem característica de transnacionais, o que dificulta o seu combate pela fiscalização. Lembrando que se a procedência do animal silvestre fosse de criadouro devidamente autorizado pelo Ibama, não haveria crime ambiental. Noutro lado, já restou comprovado que a reprodução de animais em cativeiro, principalmente aqueles considerados ameaçados de extinção, seja qual for o nível de gravidade dessa situação, representa importante ferramenta para a preservação e manutenção dessa parcela sensível de animais silvestres. Só é necessário haver intensa fiscalização por parte do poder público e fazer cumprir os regulamentos que norteiam as atividades desses criadouros de animais silvestres, já que é de conhecimento de todos, que o comércio ilegal de aves, ainda é atividade corriqueira.

Recente pesquisa realizada pela ONG – SOS Fauna, constatou que estabelecimentos que comercializam sementes de girassol na periferia de grandes centros urbanos brasileiros, vendem cerca de 120 a 150 Kg do produto por mês, sendo a sua grande maioria destinada a alimentação de papagaios existentes em lares na área urbana. Se cada papagaio consome de 10 a 15 gramas de semente de girassol por dia, chega-se a números estrambólicos de possíveis papagaios e outras aves, vivendo em cativeiro. Por certo, deve haver muitos outros “Leozinhos” vivendo ou sobrevivendo em situação irregular, país afora. A falta de fiscalização que reflete no controle e manutenção do comércio de animais silvestres e exóticos, tem gerado consequências extremamente danos ao meio ambiente nacional. À título de exemplo, a criação de javalis na Região Sul do país, devidamente autorizada pelo Ibama, na década de 1960, mas sem devida fiscalização das atividades desenvolvidas nesse sentido, resultaram no descontrole de sua manutenção em cativeiro, fugindo para o meio ambiente natural, passando a interagir e se reproduzir com espécimes nativas, provocando inúmeras alterações e danos a agricultura, fauna e flora regional e continua se alastrando pelo país. O javali é classificado pela UICN – União Internacional de Conservação da Natureza, como sendo uma das piores espécies exóticas invasoras no planeta. Ainda bem que não é caso do papagaio “Leozinho”, que no máximo deve ter uma linguinha “afiada”.

Considera-se tráfico de animais silvestres a atividade de comércio ilegal, não só de animais, bem como de produtos e objetos, deles relacionados, como peles, penas, garras, entre outras partes do animal silvestre. A primeira previsão legal é encontrada no artigo 3º da Lei nº 5.197/67, mais conhecida como Código de Proteção à Fauna, ainda em vigor naqueles assuntos que não foram tacitamente ou expressamente revogados pela atual Lei Ambiental nº 9.605/98, que dispõe sobre crimes e infrações ambientais contra o meio ambiente. Portanto, realizar a caça, a perseguição e a apanha de animais silvestres para fins de comércio ilegal, tipifica a conduta de tráfico de animais, cujo crime revela uma complexidade de situações ilícitas, indo muito além do simples comércio ilegal de animais silvestres. Conforme a RENCTAS – Rede Nacional de Combate ao Tráfico de Animais Silvestres, o tráfico de animais silvestres se divide em alguns tipos, classificados conforme a destinação dos animais. Considera-se o mais importante desses tipos, o tráfico onde os animais são destinados a colecionadores particulares e a zoológicos, como é o caso do papagaio “Leozinho”, que pelo fato de constar na lista de animais ameaçados de extinção é uma das espécies mais caras e consequentemente mais procurada, pois que representa maior probabilidade de lucro para quem comercializa animais silvestres, ilegalmente.

Ainda segundo a RENCTAS, os maiores colecionadores de papagaios estariam na União Europeia, o que deve ser verídico, pois que em 15 de janeiro de 2014, o Parlamento Europeu publicou uma Resolução para combater os crimes praticados contra a vida selvagem, em resposta aos inúmeros casos registrados por lá,região considerada a mais culta e abastada do planeta. A situação do tráfico de animais vem crescendo a cada ano, o que levou a Organização das Nações Unidas para o meio ambiente, estabelecer a data de 3 de março para comemoração ao Dia Mundial da Vida Selvagem, como tentativa de chamara atenção da sociedade para uma maior conscientização de não contribuir para a pratica do tráfico de animais silvestres. Haja papagaio para suprir a demanda dos europeus. O acordão do STJ não menciona a qual espécie pertence o “Leozinho”, mas em se tratando da espécie papagaio-cara-roxa (Amazona brasiliensis), essa deixou de constar na Lista de Animais Ameaçados de Extinção do Ministério do Meio Ambiente em 2014, elaborada pelo Instituto Chico Mendes, deixando de pertencer a categoria “vulnerável”, passando para a categoria “quase ameaçada” de extinção, ou seja, melhorou, mas não melhorou muito a situação dos papagaios brasileiros, que ainda é periclitante.

A questão ambiental envolvendo animais silvestres recebe atenção constitucional, quando a Carta Magna de 1988, no seu artigo 225, dispõe que a fauna silvestre é considerada um bem de uso comum do povo e essencial à qualidade de vida das pessoas, devendo ser protegida, juntamente com a flora, sendo vedada qualquer tipo de prática que possa colocar em risco a sua função ecológica ou que provoque a extinção de espécies ou ainda que submetam os animais, em geral, à crueldade. Esse mandamento se refere também aos animais domésticos. Os animais silvestres estão definidosno parágrafo 3º do artigo 29, da Lei Ambiental nº 9.605 de 12 de fevereiro de 1998, como sendo todas os animais pertencentes às espécies nativas, migratórias e quaisquer outras, aquáticas ou terrestres, que tenham todo ou parte de seu ciclo de vida ocorrendo dentro dos limites do território brasileiro, ou águas jurisdicionais brasileiras. Assim, mesmo sendo o animal silvestre exótico, enquanto ele estiver em seu ciclo de vida ocorrendo em território brasileiro, será considerado como integrante da fauna silvestre, ainda que não seja nativo, para fins de proteção da lei.Animal silvestre é o que vive solto na natureza, enquanto o nativo é próprio de uma determinada região, enquanto os endêmicos, são aqueles que somente ocorrem num determinado local de uma região. O papagaio é uma espécie endêmica da Mata Atlântica.

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Com a promulgação da Lei Ambiental nº 9.605/98, o crime de tráfico de animais silvestres passa a ter definição mais atual e abrangente para o crime de tráfico de animais silvestres. No seu artigo 29, inciso III, a lei dispõe que será tipificada tal conduta criminosa contra o meio ambiente, a conduta de vender (ato de comércio), expor à venda (ofertar ainda que indiretamente), exportar (enviar para fora do país) ou adquirir (comprar, receber, ainda que de forma gratuita), guarda (manter o animal cerceado de sua liberdade), ter o animal em cativeiro ou depósito (vários animais num só local), utiliza (fazer uso, como no caso das apresentações em praças públicas), transporta (levar de algum lugar para outro), não só animais silvestres, mas também ovos, larvas ou espécimes da fauna silvestre, seja ela nativa (só ocorre no Brasil), ou aquele em rota migratória, de outros países que circulam pelo Brasil, como no caso das andorinhas canadenses e ainda produtos e objetos oriundos da fauna silvestre ou migratória, tudo isso proveniente de criadouros não autorizados ou sem devida licença ou autorização do Ibama. Dessa forma, atualmente há entendimento jurídico de que o crime de tráfico de animais silvestres não se resume tão somente ao comércio ilegal de animais silvestres, como ainda prevê a Lei nº 5.197/76, mas numa variedade de condutas que podem tipificar o delito ambiental, conforme nova regulamentação de 1998. De forma que não só o autor do comércio ilegal de animais, mas também aquele que de alguma forma realizou, executou algum tipo de conduta que tenha vínculo, nexo com o enunciado no tipo penal ambiental, também deverá ser responsabilizado criminalmente. Assim, serão passíveis de responsabilização criminal, aquele que caça o animal silvestre para vende-lo ilegalmente, sendo da mesma forma penalizado, quem transporta e quem recebe esse animal silvestre de origem ilícita, seja através de compra, doação, presente, ao acaso, gratuito e qualquer outra modalidade.

A pergunta que ainda prevalece é o que deve fazer o cidadão que ainda hoje tem em sua residência um animal silvestre não oriundo de criadouro autorizado, como no caso de um papagaio ou simples pássaro canoro? Num primeiro momento, tal conduta deveria ser primeiramente evitada, mas em persistindo a situação irregular, o responsável deve procurar um órgão ambiental para regularizar a situação, ainda que tenha que entregar o seu bichinho para formal apreensão e destinação conforme manda a lei. Ao ser flagrado pela fiscalização nessa situação, fatalmente incorrerá nas respectivas imputações legais que poderão ter pena agravada, conforme o caso, quando o animal silvestre é caçado durante à noite ou em finais de semana ou ainda oriundo de Unidade de Conservação, por exemplo. Importante salientar que a Resolução Conama nº 457 de 25 de junho de 2013, somente dispõe sobre a regulamentação do depósito e a guarda provisória de animais silvestres apreendidos ou resgatados pelos representantes de órgãos ambientais que integram o Sistema nacional de Meio Ambiente, mas não tem força legal para descriminalizar ou despenalizar as condutas descritas como criminosas contra o meio ambiente, previstas na legislação ambiental vigente.

Os reflexos maléficos do tráfico de animais silvestres não atingem somente a fauna, mas toda a cadeia ambiental de biodiversidade no planeta, como flora, ecossistemas, recursos naturais e tantas outras interferências diretas ou indiretas, que afetam a preservação e proteção do meio ambiente. Noutros campos, o tráfico de animais silvestres serve como álibi para a lavagem de dinheiro, financiamento do tráfico de drogas, de armas, entre outras atividades ilícitas não só no Brasil, mas no mundo todo. Conforme pesquisas, no aspecto econômico, o tráfico de animais silvestres no Brasil, principalmente de aves, movimenta cerca de três bilhões de dólares por ano, onde são traficados, anualmente, cerca de 38 milhões de exemplares da fauna silvestre. Esses dados podem ser ainda maiores, já outros valores podem estar ocultos na projeção desse levantamento, uma vez que tudo é feito de forma a burlar a ocorrência do crime e a própria legislação.

Só existe oferta de animais silvestres, porque existe demanda em relação a eles. Se tem quem compra, sempre haverá quem vende. Esse mercado nefasto desconsidera-se que entre 10 animais traficados, somente dois sobrevivem as condições cruéis a que são submetidos, desde a sua captura no meio natural, seu transporte, até sua destinação final ilícita. Compactuar com isso é afrontar o direito à indefesa vida silvestre dos nossos animais brasileiros. Vida longa para o “Leozinho”, ainda que controversa decisão judicial em seu benefício.(foto acima: www.edicaoms.com.br)


ferraz-400x267-2-400x267JOSÉ ROBERTO FERRAZ

Ex-comandante da Guarda Municipal de Jundiaí; delegado aposentado da Polícia Civil; especialista e professor de Direito Ambiental.