E as coisas andam mesmo agitadas. Ou atrapalhadas. São muitas verdades ditas e muitas mais, ainda, não ditas, o que causa certo estado de alerta e apreensão. No meio deste turbilhão de acontecimentos e diante de tantas inconstâncias, o que mais se observa são coisas do cotidiano que assumem papel de destaque frente as agruras a que estamos submetidos. Lembra muito aquela música: o artista vai onde o povo está. O problema é que a desgraça vai atrás.
Para estudiosos, o cotidiano é uma fonte inesgotável de descoberta e saberes, desde os mais populares até os mais acadêmicos, mas sempre tendo como protagonistas aqueles que convivem conosco, em nossas funções e rotinas diárias, o que me leva a escrever hoje.
Termino de realizar a chamada de uma turma de alunos de uma grande e boa universidade pública. Um grupo de 30 alunos, jovens e agitados, afoitos por saber e por mostrar a que vieram, mas observo que duas jovens se aproximam da mesa onde deposito meu material, naquela sala de aula.
Uma delas se adianta e diz que não foi chamada. Seguida da amiga que diz que o nome dela está errado na listagem. Expliquei que se tal fato se confirmasse ambas deveriam se dirigir a secretaria para solucionar, lá, esta questão, uma vez que os professores recebem a listagem por e-mail.
Pego meu material, e peço a elas que observem se seus nomes estão na lista, enquanto inicio a aula. Saio de perto, volto para a turma e inicio a aula, para ao final consultar se elas estavam certas. Para meu espanto elas informam que o nome estava na lista mas que eu havia lido errado o nome delas.
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Como eu não sabia nome de nenhum dos alunos, visto o fato de ser a primeira aula do semestre, em turma nova, peguei a lista para ver se havia algum nome com grafia diferente ou algum nome estrangeiro que eu pudesse haver lido sem a devida conotação; nada de anormal, todos os nomes eram muito comuns e isso me intrigou.
Ao dispensar a classe, chamei-as e perguntei: qual foi meu erro? A primeira delas disse-me: meu nome é “Djulia” e você me chamou de Julia. E o nome da minha colega é “Dgiovana” e você a chamou de Giovana. Num primeiro instante fui pego de surpresa, mas me recuperei muito rápido e fui para o contra-ataque. Pedi que ela se aproximasse e emprestei meu pincel para que ela escrevesse na lousa seu nome.
Rapidamente ela escreveu: J U L I A, enquanto ia lendo baixinho: Dju- Li-A. Daí, eu pedi a ela que escrevesse o nome da colega, que estava sentada observando; e lá se foi o G I O V A N A, que era lido por ambas: DGI-O-VAN-NA. Olhei bem ( e ouvi bem) para elas, para a grafia dos nomes, fiz cara de desentendido e, cuidadosamente, para não parecer “bullying” ou assédio moral, disse: vocês são hilárias.
Sai da sala e voltei para meu laboratório, pensado em quantos são os casos de pessoas que conhecemos, chamados Paulo e que se dizem chamar Paolo ou Francisco e se intitulam “Frantchesco”. Sempre na melhor das intenções e ainda corrigem o leitor que pronuncia o nome sem o devido acento estrangeiro.
Diante desta demência, acelerei meus passos e fui mais rápido, ainda, ser feliz com os normais.
Saio de casa e entro na avenida Luiz Latorre. Ao chegar no cruzamento com a Avenida Nove de Julho sou abordado por um rapaz ou uma garota executando malabarismo, dividindo espaços com um outro rapaz ou uma jovem senhora que colocam um pacotinho de balas de hortelã, no retrovisor do carro. Óbvio que existe um bilhetinho grampeado explicando que a contribuição de um real é para ajudar a sustentar a família. Ou, ainda, que é melhor pedir do que roubar.
Caso entre à direita, permanecendo na avenida Nove de Julho, no próximo semáforo, é claro, há outro equilibrista, numa bicicleta alta, fazendo movimentações, para em seguida vir pedir uma moeda pela sua exibição. No próximo semáforo, ainda, passa-se sem artistas para, no semáforo da Nove de Julho, esquina do Shopping Paineiras, ser surpreendido por um rapaz que vende incenso e livros Hare Krishina ou um senhor cadeirante, conduzido por um rapaz, ambos muito gentis e polidos, mas que esperam pela ajuda do motorista.
Avança-se para o próximo semáforo, ainda sem locatário e mais um, em frente ao Habib’s, também sem ocupante. No cruzamento da rua do Retiro, outra senhora, sempre, com as balas e nos dois semáforos que circundam o chafariz, ao lado do Shopping Jundiaí, temos um outro senhor em cadeira de rodas, um malabarista e um artista de estátua viva, cujo representação é por demais abstrata que não me permitiu ainda entender o que significa, que abordam os motoristas que param na luz vermelha.
Fechando: e aí? O que pensar disso ou o que fazer com isto? Este problema social será solucionado com uma ajuda de uma moeda para cada um deles ou para uns eleitos e no outro dia (ou na outra passagem pelos locais) para os demais outros? Já ouvi dizer que é um caso de polícia. Será? Mas já ouvi dizer que é caso de melhor conduta das ações publicas das secretarias de bem estar social. Será?
O que me cabe fazer ou o que não me cabe fazer? Não sei. Sei que é constrangedor ser abordado por oito pessoas, em propostas semelhantes, com técnicas diferentes e negar um real. Afinal serão apenas R$ 8. Se passar uma só vez. Mas será esta a questão? O buraco não estará mais exposto e mais abaixo? Isso só incomoda a mim ou alguém mais sente este constrangimento?
Fazer de conta que não vê é acreditar na invisibilidade do ser humano. Ver e não fazer nada é fortalecer o endurecimento afetivo e o distanciamento dos menos favorecidos. Abrir o vidro e ajudar é possibilitar a manutenção do estado de pobreza. Qual a solução? Que órgão, de fato, poderia ser mais atento, em nossos semáforos, de modo a evitar estas cenas? É mesmo uma questão incomoda que estamos contatando, sem solução e sem proposta assertiva de ação.
Tenho motivos para muita alegria, ao menos, neste final de semana. Todos os noticiários, sem exceção, divulgam que o índice de inflação é controlável e que atinge a casa de quatro ponto alguma coisa, que não chega a cinco. Claro que me deixa feliz, por ver que temos uma inflação perto da Finlândia, da Dinamarca, da Áustria, da Suíça e de demais países com economia estável e equilibrada.
Em cima desta notícia, vem outra, sobre a aposentadoria e salário mínimo para 2018. Subirá o mesmo quatro ponto alguma coisa, é claro, pois é assim que se procede, num país não perdulário, com contas justas (justa de justiça e justa de precisão, o caso do Brasil, é claro). Significa dizer que o aposentado e o trabalhador que recebem o pagamento com base no salário mínimo, em 2018, receberá algo um pouquinho menos de R$ 1 mil.
E vejo e ouço muita gente feliz, com os dois fatos: com a baixa inflação e com o aumento dos salários-base para o próximo ano. E começo a me perguntar: onde tem essa tal inflação? Em que cidade do Brasil? Só uma…não precisam ser citadas duas ou três. Onde existe isso? Quem acredita nisso? E, tão logo este aumento seja chancelado, a besta fera acorda e arregaça o bolso do brasileiro.
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Óbvio que a besta fera é a inflação, indomável, arrebatadora e cruel. Absurdamente elevada e dolorida, com desemprego surpreendente e miséria exposta; mas quem está se preocupando com isto? Hoje, véspera do Dia dos Pais, os shoppings estão lotados de pessoas que ignoram o difícil momento pelo qual passamos, entram em crediários, parcelam no cartão e presenteiam.
Aqui me vejo diante de duas questões: quando vamos desmascarar os políticos e gritar que não aceitaremos mais mentiras (esta é a primeira) e por que a educação financeira não faz parte de nosso currículo básico (para entendermos o quanto somos lesados e quanto permitimos ser lesados).
Já não basta tomar conta da própria vida. A enxurrada está forte demais e acaba arrastando a todos para a vala comum. E assim, vou eu, vocês, vocês e demais brasileiros para o fundo do poço. Já não basta cuidar de si. Que país é esse? (foto acima: www.mdig.com.br)
AFONSO ANTÔNIO MACHADO
É docente e coordenador do LEPESPE, Laboratório de Estudos e Pesquisas em Psicologia do Esporte, da UNESP. Mestre e Doutor pela UNICAMP, livre docente em Psicologia do Esporte, pela UNESP, graduando em Psicologia, editor-chefe do Brazilian Journal of Sport Psychology.