Talvez estejamos diante de uma das mais desafiadoras tarefas: investigar pessoas que divulguem informações pessoais sobre a sua sexualidade e afetos, em especial quando esta sexualidade e afeto são considerados tabu social, histórica e culturalmente, estigmatizado e que recebe olhares de preconceito, discriminação resultando em exclusão. Neste artigo vamos discutir o esporte, os treinadores, os atletas e o assédio sexual.
Nosso estudo teórico caminhou por situações que apontam a sexualidade como assunto constrangedor, porque, na cultura do esporte, jogadores de futebol representam o machismo, a masculinidade, a coragem, a resistência física, a dominação, a violência e agressão física e a resistência. Sendo assim, o mundo do futebol, então, é um lugar incomum e improvável para a homossexualidade se manifestar, porque os atributos estereotipados de homossexualidade são dicotomicamente oposto, visto que incluem efeminação, timidez, fragilidade emocional, fraqueza física e submissão.
As dificuldades surgiram quando os pesquisadores abordaram esta questão, começando a despertar sentimentos e emoções que estiveram adormecidas por muitos anos, devido a uma falta de motivação para explorá-las, ou para não reviver “velhas feridas”, que já tinham cicatrizado. Discutir a sexualidade provou ser um encontro que foi permeado pelo medo, o ciúme, a hesitação e excitação, tudo ao mesmo tempo que simultaneamente possibilitou a manifestação da angústia e alívio, fornecidos pela oportunidade de desabafar sobre os dilemas morais e emocionais vivenciados no esporte, em outros tempos da vida.
Percebemos, sim, que o caráter naturalizado da violência deve-se, principalmente, às rígidas crenças calcadas em uma ideologia hegemônica masculina, compartilhada entre os homens, as quais os aprisionam em papéis predeterminados e inflexíveis, conforme verificamos com nossos atletas. No contexto, então, reforça o papel da masculinidade e insere nele princípios de violência, seja ela qual for, mas que resista ao passar dos tempos e a vinda de novos costumes.
Relatando suas histórias de vida, os participantes revelaram experiências pessoais em que as relações treinador – atletas, ocasionalmente, foram marcados por assédio sexual, e, mais especificamente, pelas relações homossexuais que ocorreram entre este par funcional, em campeonatos juvenis. Em muitos momentos das entrevistas havia exposições afetivas ou relato de envolvimento sexual e erótico entre treinadores e atletas, situações estas que aconteciam com freqüência diária, nos alojamentos da equipe.
Observou-se, nas respostas e categorizações, uma maior incidência de enunciados que remetessem as relações puramente homoeróticas, em decorrência da exposição corporal e da insinuação verbal e visual atribuídas tanto aos atletas como aos treinadores. A maneira com que os atletas revelavam seus corpos, esteticamente bem modelados, parecia estimular o “assédio sexual”.
E acordo com um determinado atleta entrevistado, a “embalagem” do produto desperta o desejo de consumo do técnico. ” [ …] É isso aí, uma relação sexual. A pessoa queria fazer sexo comigo para que … eu pudesse estar em uma equipe melhor ou até mesmo ser convocado para uma seleção. [ …] Foi um envolvimento mais íntimo, sabe? Você tinha que ter uma relação sexual, por vezes com … com o treinador, para poder subir na vida, para ser alguém ” .
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Parece, também, interessante notar nesta conversa a mudança de direção do discurso, que implica em apontar como único responsável pelo assédio a figura do técnico, sem avaliar a exposição corporal; este fato parece marcar o momento em que o orador tenta guardar-se e não comprometer a sua auto-imagem heterossexual.
Uma das justificativas que um dos entrevistados deu para que o assédio sexual ocorresse mais frequentemente com atletas jovens e, em menor escala de freqüência com os atletas adultos ou profissionais é que, nesta fase, o adolescente passa por um período de instabilidade, incluindo a fragilidade financeira. Isso facilita um tipo de assédio que ocorre por meio da troca de favores sexuais por bens materiais: roupas, acessórios , presentes e jantares, entre outras promessas. “[…] Esse tipo de assédio acontece o tempo todo em ligas jovens, geralmente com os adolescentes, [ …] a criança que vive na concentração esportiva ou no alojamento, e que … é assediado , ele acredita nas promessas financeiras, ilude-se com os presentes “.
Bauman( 2008; 2011) argumentou que, com este tipo de intercâmbio, as relações não estão garantidos, mas são apresentados como cultura fast-food: fugaz, passageira, e reveladora de uma sociedade pós -moderna. A moral ea ética do esporte correspondem diretamente com o que a sociedade adota como norma. Portanto, como argumentado por Bauman, ocorrem alterações de acordo com a necessidade de adaptar-se ao momento histórico e, neste caso, assume perfil comercial, de troca, fugaz e liquefeito. Tanto violência quanto agressão são enfrentadas, no momento, como se fossem partes inerentes do todo, representado pelo sucesso na vida esportiva.
Acreditamos que, para os nossos participantes, quanto maior o grau de vulnerabilidade, maior a possibilidade da chantagem emocional e psicológica tornar-se uma realidade. Nestes casos, os incentivos que os técnicos ofereciam para ganhar a confiança dos jovens jogadores, e, posteriormente, para receber favores sexuais, culminava com promessas de sucesso profissional.
No entanto, este jogo erótico e enganoso criado pelo treinador não parece depender apenas do desenvolvimento de relacionamentos íntimos com os jogadores. Em vez disso, os atletas cumpriram as respectivas intensões dos treinadores apenas na medida em que eles eram obrigados, com a finalidade de estabelecer um “contrato” de relacionamento social mais brando.
Por conta própria, o atleta não pode atingir plenamente o sucesso social e tornar-se celebridade, sabemos disso. O treinador e os seus companheiros de equipe representam o “pacote” necessário para o seu crescimento pessoal e profissional. Neste sentido, as pressões colocadas sobre os atletas em curso, para alcançar o sucesso profissional, contribui para a sua posição submissa em relação ao poder e autoridade de um treinador .
Afetiva, profissional, experimental, tais trocas emocionais, em ligas juvenis de futebol, muitas vezes culminam em trocas sexuais. Portanto, esses elementos situacionais representam “saberes” que estes jovens atletas terão de adquirir a fim de participar com sucesso em tais grupos, sem serem molestados ou violentados física ou moralmente. No entanto, questionamo-nos sobre a maturidade destes adolescentes, para tamanha proposta.
Estes argumentos nos levam a imaginar, então, que os conflitos surgirão, com base no aparecimento de sentimentos ambíguos dos jogadores. O treinador é o arquétipo paterno, por isso o atleta não pode negar-se a ele, visto que, como “filho” do treinador ele está sendo preparado para o sucesso e para atuarnum nível profissional, mesmo que, no momento seguinte, este filho sejamolestado pelo pai.
Neste sentido, o jovem jogador não pode se permitir ser desejado sexualmente por outra pessoa do mesmo sexo, especialmente se essa pessoa tende a exercer o poder paternal. Esses sentimentos não de fácil compreensão nem são compatíveis com os atributos idealizados para o jogador de futebol, que deve ser um homem e ser desejado por uma mulher.
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Assim, o “jogo” continua, deixando os jovens jogadores na posição de negociadores de favores sexuais em troca de promessas de sucesso. Isso desafia o senso moral dos adolescentes e deixa-os emocionalmente vulnerável. Não acreditamos que este “caso” seja a regra em todo o ambiente esportivo. No entanto, nossos resultados sugerem que os efeitos desta prática são profundamente violentos e agressivos e merecem uma investigação mais aprofundada, talvez com outros grupos de atletas de futebol e com atletas envolvidos em outros ambientes esportivos.
Nossa pesquisa nos conduz ao ponto de afirmarmos que os homens são os principais agentes e as principais vitimas de atos violentos, e que a questão da violência e da agressão no meio esportivo tenha um viés de cumplicidade, em que nem vilões nem violados tentam, sequer, apontar para a situação constrangedora do ataque a masculinidade. Isto faz com que se perpetue o ritual de iniciação, macabro e conivente, existente nos bastidores do sucesso esportivo.
AFONSO ANTONIO MACHADO é docente e coordenador do PPG- Desenvolvimento Humano e Tecnologias da UNESP. Mestre e Doutor pela UNICAMP, livre docente em Psicologia do Esporte, pela UNESP, graduando em Psicologia.