Em 1657, todas as divisões de terras da vila formosa de Nossa Senhora do Desterro de Jundiahy eram registradas num caderno feito de papel de trapo, muito comum na época. O documento era chamado de Caderno de Datas, o termo usado para ‘doações’. Este caderno ainda existe, está em bom estado de conservação e está sendo estudado. Ele revela como era a vida e, principalmente, a fala dos moradores da vila que tinha apenas dois anos de existência. A vila cresceu, se transformou numa das maiores cidades do Brasil e que hoje completa 362 anos. A pesquisa está sendo feita por Kathlin Carla de Morais, de 27 anos, nascida em Jundiaí. Ela é orientada por Verena Kewitz. E pensar que Kathlin começou o estudo por conta do famigerado ‘r’ que o jundiaiense pronuncia e que é tão diferente do paulistano. Formada em letras e técnica em conservação e restauro de papeis, ela conta como está sendo este trabalho que mostra como eram os primórdios de Jundiaí.

Você e Verena Kewitz são de Jundiaí? Qual a formação de vocês? Idades? Onde trabalham?

Eu tenho 27 anos, nasci e morei minha vida toda em Jundiaí. Eu sou formada em Letras, desde 2015, com habilitação e licenciatura em Português e em Francês pela Universidade de São Paulo. Sou também técnica em conservação e restauro de papeis pelo SENAI desde 2014. Atualmente, sou mestranda em Filologia e Língua Portuguesa pela USP. Minha orientadora, Verena Kewitz, nasceu em São Paulo e é formada em Letras pela USP, onde trabalha como docente da área de Filologia e Língua Portuguesa. Ela fez mestrado e doutorado na mesma área e universidade e é pós-doutora em Linguística pela Unicamp.

Como ficaram sabendo deste caderno? Onde ele está guardado? Está bem conservado?

Sob a orientação da professora Verena, eu comecei, em 2012, meus estudos sobre a documentação de Jundiaí. Eu fiz uma disciplina chamada “Introdução aos Estudos de Língua Portuguesa” e me interessei bastante pela questão de documentação antiga que poderia ser utilizada como material para estudos de português. Meu interesse maior na época era saber o motivo da minha pronuncia do ‘r’, que é tão diferente do ‘r’ dos paulistanos. É a forma caipira como os próprios jundiaienses falam. Procuramos trabalhos que tratassem desse assunto e infelizmente percebemos que, mesmo Jundiaí sendo umas das cidades mais importantes do Estado de São Paulo, ninguém havia estudado aspectos linguísticos da cidade. Para ser bem sincera, pouca gente estudou qualquer coisa que tenha relação com nossa região, a não ser aspectos hidrográficos. Então, como parte de minha primeira pesquisa, fiz um levantamento de toda documentação existente na cidade e foi muito feliz a descoberta de que no Centro de Memórias de Jundiaí (CMJ) há uma grande quantidade de documentos antigos guardados e extremamente bem conservados, como é o caso do Caderno de Cartas de Datas.

O que é o Caderno de Cartas de Datas de Jundiaí? Por favor, descreva-o fisicamente – o que quer dizer “datas” neste contexto?

O Caderno de Cartas de Datas é um conjunto muito bem conservado de 96 páginas manuscritas, cujo objetivo é documentar a divisão de terras feita em Jundiaí em 1657 por meio de doações, que eram feitas pelos oficiais e vereadores da Câmara Municipal aos moradores da vila. O caderno é escrito em papel de trapo e com tinta ferrogálica (composta de sulfato de ferro, ácido galotânico, extraído da noz da galha formada no carvalho, e um aglutinante, em geral a goma-arábica dissolvida em água), ambos muito comuns para a época. A encadernação original é de couro e por cima há uma capa de tecido plástico na cor verde para proteger o revestimento original. ‘Data’, nesse contexto, quer dizer doação.

Havia outros cadernos? Por que escolheram o de 1657?

Há vários cadernos de diferentes assuntos, como Livros-caixa, Mandados de Câmara, Atas etc. Em 2015, durante minha segunda pesquisa relacionada a Jundiaí, eu transcrevi o caderno de atas da câmara que data de 1663. Assim, como eu já havia trabalhado com o livro mais antigo dessa tipologia, Verena e eu escolhemos o livro de Cartas de Datas por ser o único exemplar, ou seja, não há outros cadernos de cartas de datas, e também por ser o manuscrito mais antigo do acervo do CMJ.

Nesse tipo de pesquisa, primeiramente escolhemos o manuscrito e, depois de transcrevê-lo, observamos quais são os aspectos que podem ser estudados. Assim, depois de ter terminado a tarefa de passar a escrita manuscrita para um suporte que é mais facilmente lido, no meu caso um documento word, Verena e eu observamos que o documento guarda algumas tradições discursivas, isto é, maneiras de falar e escrever que tem um significado para quem usa e que vão sendo passadas de geração para geração. Como exemplo, podemos citar as fórmulas “Treslado de uma carta de data de chãos para Casas e quintais”, “Os oficiais da Câmara, juízes e vereadores e mais oficiais desta vila formosa de Nossa Senhora do Desterro de Jundiahy, capitania de São Vicente (…)” que estão presentes em todas as cartas de datas. A primeira fórmula é uma espécie de cabeçalho, e a segunda refere-se à abertura do documento. Ambas validam  o documento de modo que seja reconhecido como oficial.


 

REPRODUÇÃO DO CADERNO DE DATAS:

  

A TRANSCRIÇÃO DAS DUAS PÁGINAS:

Kathlin Carla de Morais: interesse inicial pela pronuncia do “r” dos jundiaienses(fotos Arquivo Pessoal e FMPortella)

 


 

Qual a importância deste documento?

O documento é importante por ser o único dessa tipologia no CMJ, por ter sido lavrado em Jundiaí e por ajudar a compreender não somente aspectos linguísticos, mas também outras áreas do conhecimento como História, Demografia, Direito etc, pois dá sinais de como a sociedade era organizada na segunda metade do século XVII. Vale lembrar que nesse período, havia poucas vilas na Capitania de São Paulo (sendo Jundiaí uma das mais antigas), poucos sabiam ler e escrever e pouca documentação sobreviveu ao tempo nos acervos. Por isso, é de extrema importância resgatar e conservar documentos anteriores ao século XIX, quando já havia mais pessoas capazes de ler e escrever (ainda que poucos comparando-se aos dias atuais).

O trabalho de vocês tem a ver com o Português falado no interior de do Estado, no caso, Jundiaí. Devido aos problemas de distância, falta de meios de comunicação, na mesma época falava-se diferente em Jundiaí e capital? Ou Jundiaí e outras cidades do interior?

As pesquisas começaram por causa de uma curiosidade linguística sobre Jundiaí, mas ainda não temos dados que possam confirmar se havia de fato diferenças. Estudos sobre língua são sempre feitos a passos bem pequenininhos e lentos. Pelo fato de não termos registros orais anteriores ao séculos XX, quando o gravador de som passa a ser usado para esse fim, é um pouco complicado afirmar se havia diferenças significativas e que pudessem atrapalhar a comunicação a ponto de os falantes não se compreenderem naquela época. Quando se estuda a história de qualquer língua, lidamos basicamente com textos escritos, que não representam sempre a forma como se falava em determinada época, mas sim a forma como se escrevia com objetivos muito específicos, como é o caso das Cartas de Datas.

Uma pessoa nascida em Jundiaí naquela época se viajasse para Portugal teria dificuldades para se comunicar?

Acredito que não, uma vez que o contato com portugueses deveria ser rotineiro, dada a condição de colônia, em que muitos portugueses vinham para o Brasil e/ou viviam aqui, fossem como designados da metrópole para cargos de poder, fossem como imigrantes, sem esquecer que vários degradados foram mandados para o Brasil.  Assim, uma pessoa nascida em Jundiaí talvez não tivesse dificuldade em compreender os portugueses da época. É preciso atentar para o fato de que vários aspectos da linguagem de Portugal sofreram mudanças por volta dos séculos XVII e XVIII, como é o caso da pronúncia que caracteriza o português falado hoje em Portugal. Costuma-se pensar que só a língua portuguesa falada no Brasil sofreu mudanças e não a falada em Portugal. Mas as pesquisas comprovam que lá se mudou muito também. Hoje essas diferenças são bem perceptíveis, mas se estamos falando da linguagem anterior ao século XVIII, muito provavelmente portugueses e colonos se entendiam mais do que hoje.

Se existisse uma máquina do tempo e fosse possível viajar para 1657, quais as principais dificuldades que teríamos com o português falado em Jundiaí?

Talvez as maiores dificuldades não fossem com a fala propriamente dita, mas com o vocabulário usado na época. Por exemplo, o nome do documento estudado é ‘Cartas de Datas’. “Data”, para nós, significa “dia, mês e ano” e não “doação”. Então esse tipo de diferença talvez tornasse a comunicação um pouco mais difícil, mas não totalmente impossível, acredito.

Trechos mostram palavras escritas de forma diferente. Exemplo: “uilla”. No contexto é possível perceber que o escrivão estava se referindo à “vila”. Escrevia-se de forma diferente da maneira que se falava?

A escrita é somente uma tentativa de anotar o que é verbalizado;  trata-se de uma convenção. É preciso lembrar que os primeiros acordos ortográficos, que vão regular a forma de se grafarem as palavras, datam da primeira metade do século XX. Antes disso, as poucas pessoas que, de alguma forma, escreviam ou seguiam algum modelo anterior, de outra pessoa, ou grafavam as palavras conforme as percebiam. Não acreditamos que as pessoas falassem realmente ‘uilla’, ‘uerdades, ‘ureadores’ etc. Havia apenas a tendência a grafar, neste caso, ‘v’ por ‘u’, assim como se grafava ‘c’ como ‘ss’ como em ‘ofissiais’, por exemplo.

Quais as principais curiosidades que encontram? Utilizavam palavras que para nós, hoje, seriam obscenas, por exemplo?

Não há palavras obscenas, sobretudo por ser um documento oficial, mas é curioso observar que as pessoas que eram responsáveis por doar as terras eram também solicitantes de terras, ou seja, seu pedido jamais seria negado. Curioso também observar, no caso específico das Cartas de Datas do século XVII, o uso de um termo tupi, “tijupar”, que significava “casebre, cabana”, diferente de “casa”, pois alguns solicitantes pediam terras para construir sua casa, onde já tinha um tijupar.

Há alguma herança? Palavras ou expressões deles que conseguiram sobreviver? – Saindo um pouco do campo linguístico, é possível fazer um perfil do jundiaiense e da cidade daquele período?

A maior parte das palavras sobreviveu. Com exceção de palavras de campos específicos, como botânica e que são difíceis em qualquer circunstância; compreendemos bem as palavras do texto. O que pode complicar a compreensão é a falta de pontuação, como vírgulas e pontos finais, e por vezes a forma de ordenar as palavras na frase e as fórmulas, que são típicas desse tipo de documentação oficial, jurídica, mas de maneira geral, o texto é facilmente entendido.

Em sua dissertação de mestrado, Miyoko Makino descreveu detalhadamente como eram os jundiaienses naquela época. Em poucas palavras, meus conterrâneos eram bastante pobres, a vila tinha uma economia de subsistência, e os moradores eram por vezes acometidos pelo bócio (aumento do tamanho da glândula da tireoide). O que posso acrescentar pelas minhas pesquisas é que os jundiaienses eram bastantes organizados, pois se encontravam e registravam esses encontros em atas mesmo quando não havia nada para ser pedido ou mudado, o que dificilmente acontecia em outras vilas da mesma época (a exemplo de um estudo comparativo que realizei com as atas de Jundiaí e de Mogi das Cruzes escritas todas no século XVII)

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O trabalho já está concluído? Se não, quando será e o que está faltando?

O trabalho ainda não está concluindo, pois o mestrado ainda está em andamento. A previsão de término é em maio de 2018 e falta somente estudar de forma mais aprofundada como se dava a concordância na escrita, ou seja, se o escrivão  usava ‘s’ para marcar o plural, se conjugava os verbos no plural ou se usava sempre no singular, por exemplo. O trabalho inclui a edição fac-similar e filológica de todo o caderno de Cartas de Datas de Jundiaí de 1657. Esse tipo de edição envolve a reprodução das imagens feitas do manuscrito, ao lado da transcrição em que se conservam todas as características do original, como ortografia, pontuação, alinhamento, acentuação etc.

A pesquisa de vocês faz parte de algum projeto? Qual? Qual o objetivo dele?

Sim, a pesquisa faz parte do Projeto de História do Português Paulista, apoiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP, Processo N. 11/51787-5), e tem como objetivos a seleção e edição de materiais (impressos e manuscritos) de diferentes períodos que possam ajudar a compreender as mudanças da variedade paulista do português. É um projeto em que atuam vários pesquisadores das três universidades estaduais paulistas (USP, UNICAMP e UNESP), dividido em dez subprojetos. Estamos finalizando a segunda fase desse projeto, que teve como idealizador o linguista e professor emérito da USP/UNICAMP Ataliba T. de Castilho. Para saber mais, indico as seguintes páginas na internet:

http://revistapesquisa.fapesp.br/2015/04/08/ora-pois-uma-lingua-bem-brasileira/

http://phpp.fflch.usp.br/corpus

http://revistas.ufpr.br/abralin/article/view/52011/32050

http://phpp.fflch.usp.br/sites/phpp.fflch.usp.br/files/Atas%20de%20Jundiai_XVII_revisao%20completa_2016.pdf

http://revistapesquisa.fapesp.br/2017/10/31/a-riqueza-da-lingua-falada/

http://revistapesquisa.fapesp.br/2017/09/22/ataliba-teixeira-de-castilho-o-linguista-libertario/