A CHUVA

chuva

Era começo de tarde quando a chuva começou. Não foi anunciada com trovões nem ameaçada por nuvens carregadas. Simplesmente caiu. Como quem chega sem bater à porta, mas com licença implícita para entrar. Era uma daquelas chuvas serenas, contínuas, que parecem pedir silêncio e pausa — como se o mundo, de repente, ficasse suspenso entre o barulho das gotas e a respiração lenta da alma.

Há algo de sagrado na chuva. Talvez porque ela convoque uma desaceleração. Ela nos convida ao recolhimento, ao abrigo, à introspecção. A chuva, ao contrário do sol, não exige produtividade, movimento, pressa. Ela autoriza parar.

Ao escutar o som da água batendo nos telhados, nas folhas e nas ruas, um sentimento antigo vem à tona. Não se trata apenas de tempo nublado; é como se algo dentro de nós também começasse a chover. Memórias, sensações, imagens. A chuva externa parece ativar uma chuva interna — e é aí que entra a nostalgia.

Chove e, de repente, me lembro do cheiro do café na casa da minha avó. Do som dos chinelos na varanda. Daquela música que alguém tocava ao longe, em algum verão esquecido. A chuva tem esse poder: de abrir janelas do passado com a mesma delicadeza com que escorre pelas janelas do presente.

Nostalgia não é apenas lembrar. É lembrar com afeto. É uma espécie de saudade que não dói; que abraça. É como revisitar uma casa onde já moramos — sabemos que ela não é mais nossa, mas, por alguns instantes, podemos circular por seus cômodos internos como se o tempo tivesse recuado.

Mas é importante distinguir: a nostalgia não é fuga. Não é recusa do presente. Ao contrário, ela pode ser ponte. Ao nos reconectar com experiências que nos marcaram, ela nos reabastece de sentido, nos lembra quem fomos — e, talvez, quem ainda somos.

E quando a nostalgia se acomoda no peito, traz consigo um desejo profundo: o de aconchego. Chuva e aconchego formam um par perfeito. Quando chove, buscamos calor. Um cobertor, uma xícara, um canto. Mas não é só o corpo que se aquece — é o espírito. A chuva cria um cenário propício para o recolhimento emocional. Para acender velas internas. Para ouvir o que não escutamos quando o mundo grita.

Aconchego é mais que conforto físico. É o que sentimos quando estamos onde deveríamos estar — ainda que esse lugar não seja geográfico, mas afetivo. É o colo que a vida nos dá quando parece dura demais. É a pausa para respirar fundo e lembrar que, apesar de tudo, há beleza.

E o mais curioso: muitas vezes, o aconchego nasce da simplicidade. Um cheiro. Um gesto. Uma palavra. Um silêncio compartilhado. Chuva lá fora, alma quieta cá dentro. E então, depois da chuva — como sempre — vem o frescor. O ar renovado. O cheiro de terra molhada. O som dos pássaros que retornam às árvores. É como se o mundo tivesse tomado banho por dentro.

Assim também acontece conosco. Quando nos permitimos chover por dentro, revisitar memórias, buscar abrigo e repouso, algo se transforma. Revigoramos. É como se a alma, lavada por dentro, encontrasse novas forças para seguir.

Revigorar não é sair correndo em busca de produtividade, mas voltar ao mundo com mais presença. Com o olhar mais calmo, o coração mais leve, a mente mais silenciosa. A chuva é, nesse sentido, pedagógica. Ela ensina que tudo tem seu tempo: o de parar, o de sentir, o de lembrar, o de descansar — e, então, o de recomeçar.

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Há dias em que tudo o que precisamos é de uma chuva. Não para nos molhar, mas para nos lembrar da profundidade do simples. A chuva nos devolve algo que a pressa nos rouba: a possibilidade de estarmos inteiros em nós mesmos.

Num mundo que exige tanto — opinião, produtividade, posicionamento, aceleração — a chuva vem como um convite poético à humanidade. Ela sussurra: “vá devagar”. E, se escutarmos com o coração, perceberemos que essa pausa é mais do que necessária — é vital. Chover, afinal, é também fertilizar. Solo, alma, memória. E talvez seja por isso que, depois de uma boa chuva, tantas flores apareçam. Dentro e fora da gente.(Foto: Gemini)

AFONSO ANTÔNIO MACHADO 

É docente e coordenador do LEPESPE, Laboratório de Estudos e Pesquisas em Psicologia do Esporte, da UNESP. Leciona, ainda, na Faculdade de Psicologia UNIANCHIETA. Mestre e Doutor pela UNICAMP, livre docente em Psicologia do Esporte, pela UNESP, graduado em Psicologia, editor chefe do Brazilian Journal of Sport Psychology.

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