CUMPLICIDADE

cumplicidade

A alegria por viver, em um tempo marcado por incertezas e pela sensação constante de pressa, tornou-se quase um ato de resistência. Em meio ao excesso de informações, às exigências de produtividade e ao esvaziamento de sentidos, ser capaz de encontrar beleza no simples, de sorrir com sinceridade e de se encantar com os pequenos gestos é uma postura crítica diante de uma sociedade que insiste em transformar a vida em corrida competitiva. A alegria, nesse contexto, não é ingenuidade nem fuga da realidade É uma escolha consciente, que reconhece as dores e os limites da existência, mas se recusa a deixar que eles se tornem definidores absolutos da experiência. É uma alegria que nasce da lucidez, e não da alienação, e que se manifesta com ainda mais força quando encontra respaldo em relações humanas verdadeiras, como a amizade. Nesse ponto, a cumplicidade aparece como elemento central.

Pouco se fala dela como valor contemporâneo, mas talvez seja exatamente a falta de cumplicidade que explique a fragilidade de tantos vínculos atuais. Ser cúmplice não é apenas compartilhar momentos bons, mas também sustentar o silêncio do outro, legitimar sua dor e guardar aquilo que não cabe ser exposto ao mundo. Em tempos de conexões rápidas e descartáveis, a cumplicidade se torna rara porque exige tempo, escuta e lealdade — valores pouco cultivados em um ambiente social que celebra mais o espetáculo da visibilidade do que a profundidade da intimidade. É justamente essa raridade que a torna tão preciosa: onde existe cumplicidade, há espaço para vulnerabilidade sem medo, e é nesse espaço que a vida encontra respiro e a alegria se fortalece.

A partilha, por sua vez, é a expressão concreta da cumplicidade. Partilhar é dividir sem cálculo, oferecer sem esperar retribuição imediata, é permitir que aquilo que é íntimo se torne ponte para o outro. A partilha não se resume a bens materiais ou favores, mas se revela no tempo dado, no afeto oferecido, no gesto de estar presente mesmo quando não há grandes acontecimentos a registrar. Em uma sociedade marcada pelo individualismo e pela lógica do acúmulo, partilhar é, de fato, um gesto contra-hegemônico, que resiste ao impulso de transformar tudo em capital — inclusive as relações humanas. É pela partilha que a vida reencontra seu sentido coletivo e a alegria deixa de ser experiência isolada para tornar-se celebração de um estar com alguém importante.

Mas nada disso se sustenta sem a presença das poucas e verdadeiras amizades. Se a vida é feita de encontros, é inevitável reconhecer que a maioria deles é passageira, circunstancial ou marcada pela superficialidade. A amizade verdadeira, no entanto, transcende conveniências e sobrevive ao tempo, às distâncias e até às discordâncias. Ela não se mede pela frequência dos encontros, mas pela intensidade da confiança e pela solidez do vínculo.

São poucas justamente porque exigem investimento de alma, entrega sincera e coragem de permanecer quando seria mais fácil desistir. Em um mundo que nos convida ao acúmulo de contatos e seguidores, escolher nutrir poucas e verdadeiras amizades é um gesto de maturidade e de lucidez: é preferir qualidade a quantidade, profundidade a superfície, consistência a espetáculo.

Assim, alegria por viver, cumplicidade, partilha e amizade formam uma rede invisível que sustenta o humano em tempos de desumanização. São práticas que, mais do que sentimentos, configuram escolhas éticas e políticas de como estar no mundo. Escolher viver com alegria, ser cúmplice do outro, partilhar com generosidade e cultivar amizades verdadeiras é assumir uma postura crítica diante de uma cultura que insiste em banalizar afetos, em reduzir a vida ao útil e em mercantilizar até as relações mais íntimas.

É afirmar que, apesar de todas as adversidades, ainda há espaço para a delicadeza, para a profundidade e para a beleza dos encontros que realmente importam. E é justamente nesse espaço, muitas vezes pequeno e invisível aos olhos do mundo, que a vida encontra sua grandeza.

Nessa teia de vínculos, a alegria por viver não pode ser confundida com euforia passageira ou com a obrigação de estar sempre bem, tão incentivada pelas redes sociais e pela cultura da performance. Pelo contrário, trata-se de uma alegria mais silenciosa, profunda e realista, que se alimenta justamente da consciência dos limites e das fragilidades da vida.

É a alegria que reconhece a dor sem se deixar aprisionar por ela, que descobre sentido nos gestos cotidianos e que se fortalece no encontro autêntico com os outros. Tal alegria não é produto do consumo nem de conquistas exteriores, mas nasce daquilo que se compartilha e daquilo que se constrói em comunhão.

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É por isso que, ao lado das poucas e verdadeiras amizades, essa alegria se torna ainda mais sólida, pois encontra raízes em vínculos que resistem ao tempo e às pressões externas. A amizade verdadeira é o lugar em que não há necessidade de máscaras, em que a vulnerabilidade pode se tornar força e em que o simples estar junto basta.

Ela não elimina as dificuldades da vida, mas as torna mais suportáveis. E talvez seja justamente esse o seu maior valor: em uma sociedade que multiplica artificialmente relações, mas raramente oferece profundidade, a amizade autêntica, fortalecida pela cumplicidade e pela partilha, é uma das últimas trincheiras de resistência daquilo que nos faz genuinamente humanos.(Foto: Cottonbro Studio/Pexels)

AFONSO ANTÔNIO MACHADO 

É docente e coordenador do LEPESPE, Laboratório de Estudos e Pesquisas em Psicologia do Esporte, da UNESP. Leciona, ainda, na Faculdade de Psicologia UNIANCHIETA. Mestre e Doutor pela UNICAMP, livre docente em Psicologia do Esporte, pela UNESP, graduado em Psicologia, editor chefe do Brazilian Journal of Sport Psychology.

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