E ENTÃO, O SUMIÇO. Ou: Depois do sétimo dia(Parte 2)

E ENTÃO, O SUMIÇO
Seriam as aulas on-line o derradeiro golpe contra a educação brasileira? (Foto: https://ofthebox.be/ceci-nest-pas-une-ecole/)

E então, o sumiço é a narrativa que dá continuidade ao breve diário perdido de Henrique Vitarelli.

Não há um dia em que eu não pense em suicídio” – serão as últimas palavras lidas neste curto diário iniciado sete dias antes da frase citada. Copiei o texto de um caderninho brochura, capa verde-musgo e páginas de um amarelo hipnótico. Henrique Vitarelli, meu amigo-irmão de escrita, deu aulas por sete anos nas Escolas Padre Manoel de Nóbrega Ltda. Seu sumiço desde o dia 30 de dezembro tem intrigado as pessoas com quem ele convive. Este diário é o último vestígio.

Palavras de Manoel Olivares, janeiro de 2021, em depois do sétimo dia…

04/12/2020
Sexta-feira, 07h43min, um respiro.

Hoje não trabalho, nem consigo acreditar no milagre: é sexta-feira.

Neste ano não li um livro inteiro sequer. Dei aulas e mais aulas maquinais, não tive tempo para viver. Passo dias enfurnado esperando que a pandemia passe, ouvindo música nos momentos livres que tenho.

Ontem minha avó materna teve que ir ao hospital, não por conta da Covid-19. Ela foi diagnosticada com Alzheimer. Em um ano em que tudo é catástrofe saber que alguém perderá a memória de forma gradativa pode ser visto como maldição. Ou benção. Não sei mais o que dizer, eu não sei mais o que pensar – e isso não é a ironia socrática que ensino aos alunos, mas sim o desassossego do cotidiano.

Eu estava com planos de ir ao mercado, comprar coisas pra casa e garrafas de cerveja capazes de me tirarem da rotina, mas meu celular travou, não reinicia.

É nessas pequenas coisas que sinto o cansaço. Neste final de semana terei que trabalhar feito louco para, enfim, encerrar o semestre. Não importa que hoje ou amanhã conte como o quinto dia útil, pois, na vida de um professor, em todos os meses, sempre sobrarão dias e faltará salário. O jeito é encher a cara e esquecer por algumas horas que sou uma espécie de Francisco de Assis das salas de aula on-line: tenho trabalhado quase por caridade, basta ver a hora-aula que me pagam no Estado.

05/12/2020
Sábado, 10h15min, ressaca desgraçada.

Nunca mais eu beberei, é sério. Mentira.

Ontem o Manoel apareceu com algumas latas de cerveja e um conhaque. Falamos sobre literatura, praguejamos contra a nossa política, recordamos porres em um passado recente em que ainda íamos a shows e, claro, ficamos de porre. Tudo isso entrecortado por sons: de Miles Davis a Villa-Lobos, de Björk a Racionais MC’s, passando por Pink Floyd.

Hoje corrigirei provas do 3º ano do ensino médio do Padre Manoel de Nóbrega e trabalhos dos 2ºs anos do Antenor Soares Gandra – no limite, escolas públicas e particulares estão desamparadas. A maior diferença está no fato de que, nas particulares, é possível tapear com frases de efeito esse grande desmonte da educação nacional.

A dor de cabeça está grande, vou começar depois do almoço. Agora sei o motivo pelo qual a Mirela me largou mês retrasado: não passo de uma imitação sem vergonha do Bukowski, eu poderia me dedicar à escrita de alguma boa história, mas não. Uso meu tempo livre só pra rabiscar bobagens, encher a cara e reclamar da falta de tempo. Ao menos o Bukowski escrevia. Meu celular ainda não deu sinal de vida.A ansiedade está batendo nas alturas. Paguei algumas contas, muitas ficaram por pagar.

06/12/2020
Domingo, 07h06min, hoje será à base de muito café.

Sem tempo, hoje vou aproveitar o dia para finalizar os diários de classe, lançar as últimas notas e organizar a recuperação final. Quero terminar tudo até o começo da tarde, nem vou almoçar. Prometo a mim mesmo que só paro para dar uma olhada no jogo.

Essa paranoia de home office está deixando todo mundo doido, a coordenadora me enviou mensagem hoje, talvez sem se tocar que é domingo. Ela solicitou que eu leve o computador para a escola amanhã cedo, às 07h10min – como o meu PC é antigo e não roda os pandemônios tecnológicos das aulas on-line, solicitei à escola que disponibilizasse um computador para que eu pudesse concluir as atividades letivas.

Todo início de mês eu tenho que levar a máquina para o pessoal do TI formatar e fazer os reajustes, é um saco, mas é o jeito. Amanhã dou um jeito de levar o computador… Sem tempo, sem tempo, tenho que começar a labuta. Hoje mesmo eu termino tudo, fecho o semestre e preparo as aulas finais de amanhã, depois disso vem um pouco de calmaria e logo as férias, ufa!

07/12/2020
Segunda, 09h26min, eu sou o fracasso bem-sucedido.

Fui demitido.

Assim eu ouvi: “você está sendo desligado da empresa”. Essa frase, dita pela diretora numa linguagem de telemarketing, revela como foi a minha realidade de professor nessa pandemia: uma simples máquina, simples assim.

Assim eu ouvi: “espero que não leve para o lado pessoal, você, Henrique, é um ótimo profissional…”. Tanto esforço ao longo do ano para, enfim, cair na real e perceber que não passo de cana para ser moída.

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Assim eu ouvi: “mas nós, das Escolas Padre Manoel de Nóbrega Ltda, lhe desejamos um bom fim de ano”. A coordenadora escancarou aquele riso amarelo de amizade forçada. As aulas no Estado não darão conta de pagar minhas contas e aluguel.

Sete anos de trabalho árduo. Dispensado em menos de um minuto. Fui de ônibus até a escola, lotado. Fazia pelo menos três meses que eu não entrava no transporte público – vi o caos. Apenas me levantei, deixei as duas falando sozinhas, ou entre si. Não peguei minhas coisas no escaninho, não pensei nos motivos. Apenas saí. E é assim que vou agir daqui pra frente: apenas sair.

08/12/2020
Terça-feira, 08h21min, apenas sair.

Não há um dia em que eu não pense em suicídio…
O clima de incerteza ainda paira, Henrique almeja ser escritor. Amanhã, antes de o sol nascer, sairei à procura dele.

[…]

HILDON VITAL DE MELO

‘Jundialmente’ conhecido. Escritor e pesquisador à deriva, mas professor de filosofia, por motivos de sobrevivência.
E-mail: vitaldemelo@yahoo.com.br – Instagram: @camaleao_albino

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