ELVIO Santiago encarou a ditadura: “A arte sempre vence a força”

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Na década de 1970, o professor de desenho Elvio Santiago, se viu cara a cara com a ditadura militar. Durante os ‘Anos de Chumbo’, o período mais violento do regime, ele ousou levar os alunos da escola Adoniro Ladeira para fazer arte nas ruas, coisa que os militares não admitiam. A escola funcionava no mesmo prédio do Cecília Rolemberg, na vila Rio Branco. Depois, já na escola da vila Jundiainópolis, o professor montou a peça ‘Os Saltimbancos’, de Chico Buarque. Pelas duas iniciativas que deveriam ter sido aplaudidas, Elvio recebeu incômodas e ameaçadoras visitas de uma representante da Delegacia de Ensino que o advertiu sobre as atividades consideradas ‘subversivas’. O nome do professor acabou no temido Departamento de Ordem Política e Social, o DOPS, onde muitas pessoas foram torturadas e até desapareceram, um eufemismo para mortos. Sobre estes dois episódios e também sobre a execração pública cometida por transfóbicos que estão perseguindo a bailarina jundiaiense Fetú Nicioli Cerioni nas redes sociais, o Jundiaí Agora conversou com o artista plástico Elvio Santiago. Ele está com 88 anos e se recupera de problemas sérios de saúde. Autor de quase duas dezenas de livros e muitos quadros que correm o mundo, ele continua mais lúcido – e ácido – do que nunca:

O senhor dava aulas no início da década de 1970?

Sim. Eu dava aula de desenho. Naquela época não existia Educação Artística. Eu era professor formado em desenho pela Faculdade de Ciências e Letras de Bragança, que tinha professores de alto nível. Eram os melhores! Tive a oportunidade de descobrir várias tendências filosóficas dentro da educação. Eram pensamentos modernos como as teorias do psicólogo norte-americano Karl Rogers. Eu me empolguei com os escritos deste psicólogo. Li tudo e baseado naquelas informações, criei uma estrutura para trabalhar com os alunos de maneira diferenciada. Quando dava aulas no colégio administrado por freiras, o Sagrado Coração de Jesus, também em Bragança, passei a colocar em prática essa teoria para as jovens que iriam se formar professoras. Reformulei tudo porque o desenho pedagógico é antipedagógico. Para ensinar desenho é preciso liberdade de movimento, liberdade de ação, liberdade de pensamento. Também acabei com a avaliação. Eram os próprios alunos que se avaliavam. As alunas não ficavam sentadas. Elas tinham liberdade de andar. Carteira é um empecilho. A aula era livre, totalmente democrática. As estudantes falavam o que queria, todo mundo se relacionava sem medo de tirar zero. Porém, acredito que a minha forma de lecionar estava atrapalhando e fui demitido ‘para o bem do ensino’.

Daí, o senhor veio para a escola Adoniro Ladeira, na vila Rio Branco, e levou os alunos para pintar muros e calçadas…

Sim, fui trabalhar com crianças de quinta a oitava série. Nunca imaginei que essa simples atividade pudesse ganhar o Brasil. Eu fui o primeiro a fazer isso e nunca reivindiquei o crédito. Eu achava que fazer o aluno ficar numa numa carteira era um crime, um absurdo. Porque artista plástico não está grudado na banqueta dele. Ele pega a banqueta e leva pra onde quer. Achava que todos os estudantes deveriam ter o mesmo espírito de trabalho de um artista plástico.

Elvio, o senhor tinha autorização para as pinturas na rua?

Não, não tinha nada. Imagina, ninguém sabia de nada. Eu levei os estudantes para a rua, pedi para a Guarda Municipal proibir o trânsito. A rua ficou fechada com cavaletes. Hoje seria muito simples isso, mas naquela época, na década de 1970, Deus do céu! O AI-5 tinha sido decretado em 1968! Fizemos a atividade e no dia seguinte apareceu, na escola, uma supervisora de ensino. Não sei o nome dele e também não quero saber. Essa mulher queria queria falar comigo. Fomos até uma outra sala. Ela trancou a porta. Sozinhos, ela perguntou se eu sabia que poderia ser chamado pelo DOPS. Ela disse que as atividades na rua estavam confrontando a lei e desafiando o governo militar. Respondi que não sabia disso e que não era essa a minha intenção. Ela começou a falar, falar e falar. Respondi: ‘olha, a senhora vai me desculpar mas tenho uma classe que agora está sem atividade. Preciso trabalhar. Estou perdendo meu tempo’. Fui para a sala e a deixei sozinha.

O senhor sofreu alguma represália?

Não imediatamente. As coisas ficarams calmas. Ficou o burburinho. Um colega chegou a dizer que eu poderia ser preso. As coisas eram assim. Muita gente sumiu naquela época…

Elvio, o senhor ficou com medo?

Até certo ponto sim, mas não um medo extremo. Fiquei preocupado, porque eu tinha mulher e três filhos pequenos. Já era conhecido como artista plástico e professor. Zelava muito por isso.

Considerava-se um subversivo pelo que havia ocorrido?

Não, não. Eu achava que era alguém de vanguarda e só. Achava que era uma pessoa que estava além do meu tempo, entendeu? Eu queria propor uma escola renovada, com conceitos novos, com uma visão lúcida, inteligente, aberta para o mundo.

O senhor tinha consciência do que estava acontecendo no país?

Consciência absoluta. Eu era contra. Sempre fui muito bem informado sobre política, sobre movimento dentro do país. Eu sei de tudo. O esclarecimento me colocava na esquerda. Isto porque a direita era burra. Sempre foi. Naquele tempo era pior ainda.

O alerta fez com que parasse com as pinturas das crianças, Elvio?

Não, eu não parei nada. Eu adaptei o projeto. Não dava para fazer a mesma coisa todo ano. Então, passamos a pintar os muros, pátio e paredes internas da escola, coisa que também é feita hoje.

E depois?

Acabei perdendo as aulas que tinha nesta escola e fui para a vila Jundiainópolis, que tinha cinco classes na época. Lá, montei a peça ‘Os Saltimbancos’, do Chico Buarque, que era um artista censurado naquela época. Depois, fui para o Conde do Parnaíba. E lá aconteceu a mesma coisa: uma supervisora da Delegacia de Ensino apareceu e veio me questionar sobre a peça. Fui grosseiro com ela. Respondi que meu tempo era precioso, que os alunos precisavam de mim e dela não. Depois de um tempinho, todos os professores precisaram tirar um atestado de antecedentes criminais. Os documentos de todos da minha escola foram entregues. Menos o meu. Fui até a Delegacia Seccional de Polícia Civil e pedi para falar com o chefe. Fui atendido pelo dr. Roberto. Ele tinha vários quadros meus, gostava da minha arte, e telefonou para o delegado do DOPS. Disse que eu era amigo dele e mandou o atestado ser entregue porque eu não tinha nenhum débito com a justiça. O documento chegou rapidamente.

Então, encontraremos a sua ficha se fossemos remexer os arquivos do DOPS?

Sim, minha ficha está lá. Mas não fui até o DOPS, em São Paulo. Mesmo assim, poderia ter havido implicações terríveis. De uma hora para outra eu poderia ter sido enquadrado. Também fiquei preocupado nesta ocasião.

Como as autoridades do regime ficaram sabendo do seu trabalho? Acha que foi denunciado por algum dedo-duro, algum informante?

A pessoa que veio falar comigo na escola certamente encaminhou uma denúncia. Havia muitos puxa-sacos incompetentes. A maioria dos professores não concordava com a ditadura. Então, estes profissionais eram rotulados como integrantes da esquerda. Mas também havia gente de direita nas escolas. Eram imbecis que acabavam sendo colocados de lado…

O que diziam os seus colegas que também não concordavam com o regime, Elvio?

Todos condenavam. Na minha opinião, não tem sentido militar mandar no país… Uma democracia é uma instituição civil, civil e sem interferência de militares. O militar está lá para garantir a democracia e só. Aliás, não deveriam participar do processo democrático. O militar não tem competência para isso…

O que o senhor acha de quem defende a volta da ditadura hoje?

Acredito que essas pessoas deveriam voltar para a escola. Mas precisaria ser uma escola moderna já que a atual não evoluiu. Continua arcaica e com muitos problemas. A escola pública parou antes da década de 1960.

Elvio, a arte sempre ganha da força bruta?

A arte sempre vence. Se não fosse a arte, nós seríamos homens da caverna, batendo duas pedrinhas para fazer fogo. A arte antecipa a evolução humana. Cerca de 80% das vezes, a arte joga a humanidade para frente.

A bailarina Fetú Nicioli Cerioni, que é de Jundiaí, vem sofrendo ataques transfóbicos por causa de vídeo de apresentação que fez numa faculdade do Rio Grande do Sul. O que o senhor acha disso?

Assisti ao vídeo. Não vi nada de mais. Pelo contrário, o que a Fetú fez é arte. Quanto a ela ser trans, este é um direito dela…

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