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ESTAÇÃO TERMINAL JUNDIAHY: Mazelas e desigualdades

estação

Estação Terminal Jundiahy é o início de um longo relato sobre os transportes públicos em tempos de pandemia. Os textos mostrarão as mazelas das desigualdades sociais e econômicas de um país que ignora historicamente seus problemas.

 “(…) Vai e vem, no vagão do trem,

fazendo dinheiro, ligeiro, éh, salve os marreteiros!”

– Marreteiros, Organização Xiita

Acordei atrasado, mas ainda em tempo.

Levo pouco mais que as roupas e o corpo. Na mochila: maçãs, dois lanches, garrafa com água fresca, meia dúzia de cigarros e dois baseados, a blusa xadrez de sempre, livros e o cantil de Santhiago de Compostela – goles de uísque são bons para recordar minhas antigas viagens, trechos percorridos com um velho amigo pela América Latina dos corações insones. A cada passo dado sinto afastar-se de mim, por um momento, a melancolia dos meses de quarentena, dessa pandemia sem fim. São ansiosos os olhos das pessoas com quem cruzo pelas calçadas, há aquela aflição matinal inclusive nos carros que surgem e logo desaparecem. As árvores exalam nascimento e morte.

Dias empilhados em isolamento e contendas, a incerteza pairando em cada minuto – até bem pouco tempo eu procurava um novo fôlego, meu novo fôlego, mas desisti. Pôr a cara nas ruas povoadas por gente anônima parecia, apesar de tudo, um recomeço. Há ruídos nas portas de alguns comércios; conversas que em vão tentam afastar as angústias de todos os tempos.

Nos arredores da estação ferroviária o preço das passagens é menos abusivo que o da bilheteria. Um ou dois bilhetes a cada cem engasgam na catraca, mas podem ser trocados. Vantagens em driblar a vigilância e comprar dos comércios paralelos, sempre liderados por malandros caricatos.

Aqui todo trajeto é terminal.

O sol de dezembro maltrata os nossos rostos cansados logo pela manhã. Muitos protegem os olhos com uma das mãos; outros usam bonés e não são raros os que fazem dos amarrotados envelopes de papel pardo, para currículos, uma proteção contra a claridade. Muita gente já abandonou o uso das máscaras e há quem ainda relute colocando-as, mesmo de forma incorreta. Eu disfarço como posso. À direita e à esquerda rangem ferros. Há tempos as faixas amarelas de segurança estão descascadas.

As linhas principais são para trens de passageiros. Num segundo plano ecoam apitos magoados das composições de carga; e, já ao longe, alguns rebocadores e peças de manutenção somem da vista panorâmica. Empregados e usuários trocam de turno e assim executam o mesmo ballet mecânico das atividades. As duas plataformas assemelham-se a ilhotas repletas de náufragos assombrados – um bando de solitários: o início e o fim de tudo estão sempre aqui.

Estação Terminal Jundiahy – disse.

Ressoam dos aços as palavras dispersas até que enfim esbarram em tijolos e em madeiras podres da construção avelhantada. Gente pobre, gente cansada e fodida que irá acotovelar-se até o fim dos tempos a espera desses vagões negreiros.

A CPTM informa: cuidado com o vão entre o trem e a plataforma – disse.

A CPTM informa: evite desconforto aos demais usuários! Ao embarcar, leve sua mochila nas mãos. Colabore! – disse.

Esses autofalantes não dão trégua. O aglomerado se agita ao assobio ainda distante, mas que já vem se aproximando.

Trens lotados que esvaziam e reenchem: odores, idas e vindas; cargas e descargas – A CPTM informa: Senhores usuários, bom dia. Este trem tem como destino a Estação Terminal Luz. – disse, mas já não havia quem se dispusesse a ouvir. Vidas periféricas, bairros e assentos dormitórios disputados no grito e no soco. Lá, bem longe, a cidade grande em concreto armado se insinuará para mais um dia de cansaço.

Afobação, correria e estrondos, mas não por causa do esguicho de vômito de um pinguço de meia idade, nem mesmo se trata de algum suicida que se jogou na linha. No instante em que a embarcação abre as portas, num ponto próximo da plataforma, alguém que saiu empurrando tudo pela frente tenta escapar dos fardas-bege. Mas é pego antes de alcançar o alambrado que abraça a estação.

Leva coronhadas, muitos chutes, um dos milicos vai à forra e lhe cospe na cara, três vezes. – A CPTM informa: evite acidentes, não sente no piso do trem – disse.

É um marreteiro com suas sacolas pesadas. A mercadoria de amendoins salgados e doces que seria para o dia inteiro é apreendida, os guardas gritam para que ele mostre o dinheiro, o lucro proibido – ninharias de dar pena, ele ainda não havia começado sequer a fazer os corres. É um marreteiro, inexperiente, ambulante nos seus mangueios. Talvez venha daí o único sustento, talvez tenha sido o único jeito de pagar as contas de uma casa alugada ou a pensão alimentícia de um filho que quase não vê. Ninguém saberá.  

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Agora ele permanece com a cara no chão, imobilizado. Gritos de revolta contida, algumas pessoas empunham celulares, gravam o ocorrido. Os milicos o levantam e ele reluta enquanto fios de saliva rubra lhe escorrem da beirada da boca e empapam a camiseta velha cheia de números de um vereador arcaico. Ele é levado, seus olhos pesados de vergonha evitam a direção das plataformas, diante dele viram os rostos. Um homem exposto à reprovação e aos castigos públicos. Essa é só mais uma manhã na linha 7-Rubi.

O trem já enchido ignora qualquer distanciamento social. O operador da máquina dá a partida e deixa a Estação Terminal Jundiahy. Eu e alguns outros usuários resolvemos aguardar o próximo, ninguém se dispõe a comentar o acontecimento por mais de três minutos – A CPTM informa: colabore com a segurança. Envie torpedo SMS denúncia para 971504949. A CPTM deseja a todos uma boa viagem – disse.

HILDON VITAL DE MELO

‘Jundialmente’ conhecido. Escritor e pesquisador à deriva, mas professor de filosofia, por motivos de sobrevivência.
E-mail: vitaldemelo@yahoo.com.br – Instagram: @camaleao_albino

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