Estação Várzea Paulista: rotina dolorosa e memórias, damos continuidade aos relatos que percorrem as férreas linhas, do interior à capital do estado. A pandemia é um flagelo que tem destruído a vida, sobretudo a vida dos já empobrecidos e empobrecidas do país.
“Essas coisas, agora, são como se não tivessem sido”.
– Jorge Luis Borges
Jundiahy tinha sequer ficado pra trás e já parecia impalpável para mim. Há sempre o próximo trem. O vagão vai em frente, lotado de ombros que se esbarram e olhares desencontrados. Aquele abafamento.
Nós seguimos; porém, inertes, em pequenos mundos celulares. Dos solavancos do trem ressoam o toque das esporas monótonas que levam ao trabalho diário: o transporte público é o ópio do povo: doméstica, entorpece e fode.
Lá fora há o dia, puro abandono.
Algumas fábricas baldias constituem a paisagem de grande banheiro químico a céu aberto. A máquina parece flutuar, só que não. Na vista que corre do outro lado das janelas emperradas, há o chão que se espraia para além dos trilhos, dormentes e britas. Um lodaçal, por aqui passa um rio-raso-de-chorume que se disfarça por conta do mato alto. Esse trecho fica pura merda em dias de chuva, quando aguaceiro, lixo e fedentina vêm à tona.
E o lodaçal é também minha memória onde tantas coisas espreitam com pés medrosos. Recordo das vezes em que viajei no caminho oposto a este, afundando no interior da infância mirrada. Minha mãe, cuidadosa, queria-me sempre sob suas asas, temia que seu filho se perdesse no mundaréu de gentes & estações, tudo a repelia; nada a acalmava, nem mesmo quando, transcorrido o caminho, chegávamos, suados, ao consultório do doutor João Milton, no centro velho da capital do interior.
A cada dois meses nós, de mãos dadas, embarcávamos em Jundiahy, íamos sentido Campinas, na segunda classe. Dos assentos rijos eu sentia o desconforto e o atraso. Era o início da década e os valores dos bilhetes escancaravam diferenças na qualidade da viagem para uns e outros, mas eu ainda não entendia o tamanho daquilo tudo. O ano de 1991 goteja lembranças em meus olhos…
– Amendoim salgado e doce olha a paçoquinha olha o chocolate cremoso olha a cocada caseira olha a cerveja gelada, a paçoquinha? Sai cinco por apenas um real – disse.
– Produtos de moscou, moscou os farda-bege levou – falou.
– Olá meu freguês olá minha freguesa, aqui no shopping trem sempre tem – comentou.
E são esses rumores que me arrancam de mim, essas vozes que vendem coisas de ontem e de agora, pegam e trocam notas amassadas, esses gritos que me puxam do passado ainda tão próximo. Não sei mais dizer onde morriam as linhas férreas que atravessavam o interior. Embaralho tempos e ambulantes. Nós nunca comprávamos nada, a mãe economizava os trocados e forrava a bolsa com maçãs, lanches e garrafas com água fresca – umas vezes ela levou a térmica com dois terços do seu perfumoso café. Trens e cafés: duas angústias que se atracaram neste país. Estava sempre mordiscando algo essa minha mãe, hoje sei que eram truques para afastar tristeza, exorcismos contra a ansiedade que a habitava.
O trem fede. É lento. Dois ou três marreteiros driblam corpos atordoados e vão fazendo seus comércios O brado metálico, imperativo, diz que estamos chegando à estação Várzea Paulista, antiga Secundino Veiga. A máquina estaciona, os marreteiros emudecem, os que estão dentro permanecem como autômatos, portas abrem. Ninguém desce; sobem muitos. Sopros embrutecidos temperados pelo sol que agora é cambaio em meio às nuvens. Fodeu! Será que vai chover? Será que vai chover muito? Trem parado, mormaços. Dois seguranças se avizinham, querem domar o princípio de um tumulto que logo acaba. Como se fossem guilhotinas que se odeiam as portas cerram, os marreteiros renascem, redobram os gritos.
A mochila de um trabalhador ficou presa numa das portas, causa até um pouco de risos. Este homem provavelmente encara o trajeto Várzea-Luz & Luz-Estação Várzea Paulista todos os dias. Entre engasgos e tossidas o trem recomeça exaustivo. A CPTM é um lixo.
Os primeiros empuxos são roucos, nada dizem sobre o que virá. O silêncio só é quebrado quando passageiros em pé se espremem além da conta. Uma brecha surge, é o espaço concedido para que um senhorzinho negro recurvo, cego, passe sua caneca de alumínio, guiando-se com o cabo de uma vassoura transformado em bengala – pelamordedeus, uma esmola pro ceguinho, uma esmola pro ceguinho, por favor, pelamordedeus, uma esmolinha pro ceguinho – disse.
Há algo nestes olhos falecidos, um não sei quê que transborda existência, que dignifica o mendicante, mas emana um país profundo, arcaico e atrofiado, uma terra enferma da qual todos nós somos sintomas. Esta voz não é de asilo, esta voz já foi um trovão e cada batida da bengala improvisada pontua um metrônomo doído entre chorinhos e ritmenblues. Já o vi incontáveis vezes: pedinte por vocação, os fios puídos de uma barba nunca feita confirmam: na CPTM, os pedintes, completam bodas de ofício.
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Sempre quando ele ouve a moedinha tilintar na caneca devolve afável a gentileza com um verso ou trechinhos de músicas.
Mas hoje o velho vem mais cabisbaixo. Aproxima-se, milagroso e equilibrista, entre duas colunas de gente amarrotada.
Peço licenças aos três senhores parrudos, uniformizados, que estão em pé diante de mim e dialogam. Estendo a mão desengonçada e deixo cair uma nota de dois reais, talvez ele tenha percebido, mas não há tempo para recitar bondades. O trem avança de novo, mas já descontinua, logo vem a próxima estação…
HILDON VITAL DE MELO
‘Jundialmente’ conhecido. Escritor e pesquisador à deriva, mas professor de filosofia, por motivos de sobrevivência.
E-mail: vitaldemelo@yahoo.com.br – Instagram: @camaleao_albino
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