O FANÁTICO e o silencioso

fanático

O fanático entrou no ônibus com uma Bíblia debaixo do braço e um cartaz pendurado no pescoço. Estava escrito, em letras garrafais: “ARREPENDA-SE, O FIM ESTÁ PRÓXIMO.” Era manhã de segunda-feira. O sol ainda bocejava por entre os prédios. Mas o homem não tinha tempo para delicadezas. Subiu os degraus como quem marcha. Olhou nos olhos dos passageiros como quem os desafia. E começou a falar.

Falava alto. Denunciava. Apontava. Esbravejava. O pecado estava em todo lugar, dizia ele. Na roupa da moça do banco da frente. Na música que o jovem ouvia pelo fone. Na linguagem do motorista. Na falta de fé, de jejum, de oração. O mundo estava perdido — e ele, sozinho, era a última sentinela da verdade. Ninguém o respondeu. Ninguém o provocou. Mas, de certa forma, todos sentiram-se atacados. Porque o que ele fazia não era um convite à luz. Era um bombardeio de julgamentos. E eu pensei: como se tornou tão comum essa confusão entre fé e arrogância? Há uma linha tênue entre crer profundamente e crer agressivamente.

O fanático, ao contrário do espiritualizado, não quer apenas viver sua fé — quer convertê-la em espada. Precisa ter razão. Precisa salvar os outros de si mesmos. Sente-se encarregado de purificar o mundo, como se fosse o único detentor da senha do céu. E, assim, transforma o sagrado em trincheira. Não há ternura na fala do fanático. Não há escuta. Não há dúvida. Ele não ora, ele sentencia. Não acolhe, interroga. Não sorri, adverte. Sua fé é mais tribunal que templo.

Já o espiritualizado, essa passa pela vida como o orvalho na relva: discreto, mas fecundo. Ele não precisa dizer em que crê — seu modo de estar no mundo é sua oração. Não se ofende com facilidade, não tenta convencer ninguém. Porque sabe que fé que precisa gritar não é fé — é insegurança. A verdadeira espiritualidade não berra. Silencia. E no silêncio, transforma.

É cada vez mais raro encontrar os espiritualizados. Estão ocupados demais fazendo o bem para perder tempo em discussões. Ajudam sem anunciar, rezam sem microfone, aconselham sem catequizar. Entram em uma sala e mudam o ambiente, não por presença opressora, mas por serenidade. São aqueles que, quando se vão, deixam saudade — não alívio. Mas o radical, esse grita. E grita tanto que ensurdece. E cansa.

Temos vivido tempos em que a religião virou cabo de guerra. Um puxando para um lado, outro para o outro. E, no meio, a espiritualidade vai se esvaindo, esmagada pelas certezas dos que acham que Deus é propriedade privada.

Quantos lares estão partidos por brigas religiosas? Quantas famílias em silêncio hostil aos domingos porque alguém se converteu a uma verdade intransigente? Quantas amizades quebradas porque um já não tolera a crença do outro? O que era para unir passou a separar. O que era para curar, hoje adoece. A fé que não aceita a dúvida não é fé, é soberba.

O espiritualizado conhece o valor do mistério. Não precisa entender tudo. Não exige explicações. Ele caminha com a confiança de quem sabe que o essencial se vive, não se prova. Já o fanático exige obediência. Quer rituais rigorosos, fórmulas fechadas, dogmas inquestionáveis. Teme tudo o que é livre. Desconfia da arte, da ciência, do riso, do outro.

Lembro-me de dona Zuleica, uma senhora de poucas palavras e muitos gestos. Nunca discutia religião. Mas toda semana levava sopa quente para o rapaz da rua de trás. Visitava doentes, cuidava de plantas, alimentava pássaros. Um dia, perguntei qual era sua religião. Ela respondeu sorrindo: “Aquela que me impede de ferir os outros.” E voltou a varrer a calçada. Era uma santa disfarçada de vizinha.

Porque os espiritualizados, esses andam entre nós. Não vestem túnicas, nem usam slogans. Mas têm a alma limpa e o olhar gentil. E sua maior oração é o modo como tratam os outros. Talvez devêssemos reaprender a fé com eles.

Em um mundo tão cheio de verdades absolutas, talvez o que falte seja um pouco mais de contemplação. De encantamento. De reverência pelo que escapa às fórmulas. A espiritualidade não precisa de púlpito. Precisa de presença. E, sobretudo, de humanidade.

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O ônibus seguiu seu caminho. O homem desceu no ponto seguinte, ainda vociferando contra o mundo. Os passageiros suspiraram aliviados. Ninguém se sentiu tocado, apenas constrangido. O fanático foi embora, e nada mudou. Já dona Zuleica, todos lembravam com carinho, mesmo sem jamais ter feito discurso algum. É que os realmente espiritualizados não têm tempo nem vaidade para pregar. Estão muito ocupados sendo. E ser, neste mundo de gritos, é o maior dos milagres.

AFONSO ANTÔNIO MACHADO 

É docente e coordenador do LEPESPE, Laboratório de Estudos e Pesquisas em Psicologia do Esporte, da UNESP. Leciona, ainda, na Faculdade de Psicologia UNIANCHIETA. Mestre e Doutor pela UNICAMP, livre docente em Psicologia do Esporte, pela UNESP, graduado em Psicologia, editor chefe do Brazilian Journal of Sport Psychology.

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