Você sabia que a ferrovia foi construída por pessoas escravizadas?

ferrovia

O artigo Trilhos Bantu em Jundiahy – Escravidão na Construção das Ferrovias no Século XIX, assinado por José Felicio Ribeiro De Cezare, Márcio Aparecido Martelli, André Munhoz de Argollo Ferrão é um retrato de como a ânsia pelo progresso se sobrepôs à dignidade humana. José e Márcio são de Jundiaí. André mora em Campinas. O trabalho foca a construção das ferrovias em Jundiaí que, naquela época, era um polo logístico de acesso para o sertão paulista. Esta característica foi fundamental para os projetos das linhas férreas que escoavam a produção de café do interior. Junte-se a isto, os latifundiários que se viam encurralados pela pressão da Inglaterra que queria o fim da escravidão. A entrevista com o historiador, professor José Felício(foto principal) sobre a participação de pessoas escravizadas na construção da ferrovia, em Jundiaí:

Por que decidiram investigar este tema?

A discussão a respeito surgiu por volta de 2015, quando a Diretoria de Patrimônio Histórico e Cultural de Jundiaí estava localizada em uma das salas do Complexo Fepasa, atual Espaço Expressa. O DPHC esteve por um período ao lado do Polytheama e com a mudança de governo, retornou ao Expressa. Quando ainda no Complexo Fepasa, o historiador e professor Donizetti Pinto e o jornalista e professor Felipe Andrade atuavam na diretoria e eu executava alguns trabalhos voluntários para o Museu da Companhia Paulista, sob a gestão da professora Maria Angélica, amiga de minha esposa, Juliana Borges, que à época gerenciava a unidade do Poupatempo de Jundiaí. E, durante uma reunião do DPHC, questionei sobre a existência de trabalho escravo nas ferrovias em Jundiaí, pois como aos finais de semana eu recebia os grupos para a visitação do museu e de parte do Complexo, considerei relevante entregar explanações com melhores embasamentos, pois não era tão totalmente desconhecida tal possibilidade. Foi quando o diretor de patrimônio, Donizetti me entregou alguns registros nos quais constavam informações sobre o trabalho nas ferrovias na região de Jundiaí, informou ainda a não disponibilidade de mais registros e livros contendo o assunto devido ao longo descaso de anos do poder público em relação ao Complexo, o que levou à deterioração do material arquivado por infiltrações e vandalismos. Porém, nos poucos exemplares disponíveis àquele momento, era possível levantar dados relevantes sobre meu questionamento. A princípio, o que era uma curiosidade tornou-se um ensaio para um artigo e me levou a integrar uma mesa de discussão no III Simpósio sobre Patrimônio de Jundiaí, tendo como tema o trabalho nas ferrovias em Jundiaí, a qual também participaram os historiadores e professores José Renato Polli e Alexandre Oliveira. Após o evento a pesquisa esfriou devido às demandas da profissão e interesses pessoais, retornando na minha pesquisa de mestrado, que não tratava especificamente deste tema, todavia analisava parte da história de Jundiaí, mais especificamente a região de Ivoturucaia. Sob a orientação do professor André Argollo e ao lado de outros orientandos, organizamos o 2º Colóquio sobre os Processos e Sistemas Territoriais do Café, evento ocorrido um ano antes da pandemia da Covid-19, no Complexo Fepasa. Neste momento resolvi retomar o recorte sobre o trabalho escravo nas ferrovias em Jundiaí e em parceria com o também doutorando Márcio Martelli e o professor André Argollo, produzimos o artigo publicado na Revista Jatobá da Universidade Federal de Goiás, em 2020.

Qual período o estudo foca?

O foco está no estabelecimento das estradas de ferro em Jundiaí, na segunda metade do século XIX, entre 1870 e 1872.

Estes escravos vinham de onde? Foram comprados especificamente para realizar este trabalho? Quem os comprou?

Atualmente, há discussões muito pertinentes sobre a utilização do termo “escravo”, cujo uso impregna a ideia de condição pré-determinada, o que não é real, mas o termo “escravizado” reflete a condição imposta a ser sequestrado e afastado da sua etnia, território, comunidade e memórias de maneira compulsória. O grande número de africanos que fora trazido para a região de São Paulo, entre os séculos XVII e XIX eram em sua maioria, bantu de Angola, oriunda dos portos de Luanda e Benguela. Em Jundiaí é possível afirmar grande presença de africanos de origem Guiné, Congo e Benguela, oriundos da etnia bantu. As pessoas escravizadas foram trazidas para o trabalho rural, não obstante, eram utilizadas como objeto passível de locação a outros tipos de trabalho, aprofundando a desumanização já presente, principalmente se estas pessoas possuíam algum tipo de especialização. A verificação destes dados é possível pelo acesso ao Censo de 1872, sob o regime de D. Pedro II. Há uma análise deste censo feita por Mário Rodarte (Cedeplar), que é imprescindível para compreender melhor a realidade do período, inclusive de Jundiaí. Os proprietários de terra, como por exemplo a fazenda Ibicaba, propriedade do Campos Vergueiro, grande entusiasta do embranquecimento social, característica racista do período, alugavam pessoas para qualquer tipo de trabalho, era muito comum o uso para a construção de estradas de rodagem, sempre por empreitada, lembrando que não era permitido trabalho escravo nas ferrovias, porém a construção era feita por empreiteiras que assumiam trechos e assim a brecha na lei era alcançada, além de um argumento legal, a lei de João  Lins  Vieira  Cansansão de Sinimbú, senador do  Império, presidente do Conselho de Ministros, Ministro e Secretário de Estado dos Negócios da Agricultura, Comércio e Obras Públicas, a qual permitia a locação de negros escravizados.

Qual o perfil deles? Homens de qual idade? Também havia mulheres? De qual região da África?

Em Jundiaí é possível afirmar grande presença de africanos de origem Guiné, Congo e Benguela, oriundos da etnia bantu. Sobre as mulheres não foram encontrados registros de trabalho na construção de estradas de ferro. Quanto ao perfil e idade é importante visualizar por meio quadros pertencentes ao Censo de 1872. Em relação às profissões é importante frisar que a utilização de mão de obra escrava nas rodovias, em sua grande maioria se dava ao trabalho braçal, na abertura de caminhos, assentamento de dormentes, trilhos etc., sendo que por serem alugados junto às fazendas, são trabalhadores da terra.

Eram todos, sem exceção, do povo Bantu?

A grande maioria sim, como Jundiaí sempre foi um polo logístico e havia o comércio com outras vilas, é passível a existência de outras etnias na região, todavia, como é possível perceber nos registros, a nacionalidade das pessoas escravizadas é sempre negada, ignorada. Para confirmação é necessário um aprofundamento nas análises documental e arqueológica, o que infelizmente ainda não nos aprofundamos devidamente.

Quantos escravos foram obrigados a trabalhar na construção?

Outro dado bem complexo para ser tratado, as empreiteiras trabalhavam por trecho, ou seja, para sair de Jundiaí até Campinas, Santos, São Paulo, diversas empresas atuavam alugando os escravizados para os trabalhos. Pode-se ponderar por trecho que centenas de pessoas eram utilizadas.

Se eram escravos não recebiam nada pelo trabalho. Correto?

Neste caso quem recebia era o escravagista, lembrando que em 1846, na província de São Paulo, a Lei n. 1º de 29 de janeiro foi aprovada obrigando os fazendeiros a ceder os seus escravizados por 10 dias com proporção de 20% do número total de escravizados para obras em estradas de rodagem. Os cafeicultores devido à safra do café, aproveitavam para aumentar seus lucros, alugando escravizados para as tais obras. Jaú, Tatuí, Sorocaba, Jundiaí, entre outras, possuíam leis similares como a citada anteriormente e em Limeira, sendo que metade dos escravizados deveriam ser cedidos para reparo e manutenção das estradas. Numa situação diferente, alguns escravizados, recebiam autorização para trabalhar fora e buscar alguma renda para sua carta de alforria ou para manter “os custos” de sua estadia escrava quando não lavravam a terra. Lembrando que a realidade do escravizado que lavra a terra possuía certa diferença daqueles que trabalhavam na casa.

Como eram as condições que viviam? Eram açoitados? Ficavam em senzalas? Se sim, onde ficavam estes abrigos em Jundiaí? Há informações se muitos conseguiam fugir e depois eram recapturados?

Sobre os quilombos é necessário um aprofundamento maior, trabalho que está nos planos, conversando com o amigo e historiador Alexandre Oliveira, ele evidenciou-me que é possível citar o Quilombo Brotas e o Quilombo da Rocinha, lembrando que o Rio Capivari, assim como em outras localidades, serviu de rota de fuga, caminho para a busca da liberdade. Em Itatiba chegou a acontecer toque de recolher devido às ações dos aquilombados na busca por mantimentos e necessidades para o quilombo. Uma curiosidade: entre junho e julho de 1885, a polícia tentou atacar o quilombo, mas ao ver o número de aquilombados considerou chamar outro destacamento para efetivar a ação, informação disponível no Correio Popular de Campinas. Outro elemento importante para compreender tal período é o documento recém-disponibilizado pelo Arquivo Histórico Municipal de Jundiaí(AHMJ), e me foi enviado pelo diretor Paulo Vicentini há alguns meses e é bem interessante, ele mantém a disposição do conteúdo, das linhas, mas sob o novo acordo ortográfico e mantendo sempre que possível o léxico original. E traz como a lei foi colocada a favor dos escravagistas. Houve também por parte da vereança da época, posicionamentos contrários às leis que de alguma maneira poderiam beneficiar os escravizados. A transcrição e edição é de Paulo Vicentini e a revisão é de Isabella Ferraro e Gilson Santos, todos do AHMJ. Estes e outros documentos podem ser acessados pelo acervo cultural de Jundiaí.

O que comiam? Aliás, eram outros escravos que cozinhavam?

Feijão, arroz, mandioca, algumas verduras e com sorte carne seca ou partes suínas. Sobre a produção de alimentos em Jundiaí é possível citar “uma produtora singular, na cidade, foi uma mulher de 47 anos que possuía 96 escravos em sua fazenda e colheu trinta toneladas de milho, 1,5 tonelada de café, nove toneladas de feijão e uma tonelada de arroz em um ano”. Os escravizados, além dos restos da alimentação da família do proprietário, por vezes, precisavam manter uma pequena lavoura de subsistência e em grande parte cozinhavam entre eles.

Muitos destes escravos acabaram se fixando em Jundiaí? Têm descendentes por aqui?

Seria interessante que considerássemos como descendentes de negros que foram escravizados e não como descendentes de escravos. Com a Lei Áurea em maio de 1888, e o desinteresse social pela população agora livre, existiram tentativas de união dessa população para sobreviverem. O trabalho Entre Vistas – cidades que vivem nas memórias, trabalho executado pelo historiador e professor Alexandre Oliveira, em parceria com o Sesc Jundiaí e uma equipe incrível, traz informações sensacionais sobre a Irmandade do Rosário, contando sobre como em 1922 a capela destinada à reunião religiosa dos negros na cidade foi derrubada para “embelezamento” da cidade, a unificação dos clubes de negros no Clube 28 de Setembro para a existência e resistência. Infelizmente, Jundiaí se prendeu a ideia de uma colônia italiana, hipótese que não encontra embasamento em nenhum estudo, porém dificulta o aprofundamento da história negra e indígena na cidade. Mas é só olharmos ao nosso redor para encontrarmos os descendentes daqueles que sustentaram o tripé econômico do desenvolvimento paulista e brasileiro. Na foto presente no trabalho Entre vistas e disponível no acervo do AHMJ é possível ver quem integra o grupo de trabalhadores e quem é visto como “quem não deveria estar lá”. O  texto que acompanha a foto(abaixo) diz: “Fotografia de maquinistas do lado de fora das oficinas da Companhia Paulista. Fotografia da 1899. Acervo do AHMJ. A ferrovia é um ícone da modernidade capitalista nos séculos 19 e parte do 20. Notar, nessa fotografia, que todos os trabalhadores que participam diretamente desse processo de modernização são brancos. No entanto, no lado esquerdo, foi registrado um homem negro. Isso não foi proposital, pois o homem negro não compõe a cena da fotografia. Esse homem negro traz à tona uma das características mais importantes da linguagem fotográfica: ter um caráter indiciário, no qual tão importantes quanto aquilo que é mostrado na fotografia, são suas omissões.”

Na introdução vocês afirmam que a ferrovia trouxe progresso. Porém, questionam se o crescimento econômico vale a pena a qualquer custo. É óbvio que a escravidão é algo nefasto. Porém, fazia parte daquele contexto histórico. Como vê esta, digamos, ‘contradição’?

Apesar de constituir o imaginário coletivo do período, de fazer parte daquele “contexto histórico”, hoje o trabalho análogo à escravidão faz parte do nosso contexto histórico? É aceitável? Digo isso englobando itens de vestuário e alimentícios.  No nosso artigo Trilhos Bantu em Jundiaí, correlacionamos o trabalho escravo na ferrovia com o trabalho análogo à escravidão nas minas de cobalto na República Democrática do Congo, de onde as grandes marcas de dispositivos eletrônicos retiram matéria-prima para componentes para os nossos dispositivos eletrônicos, além de trabalho infantil. Será que abdicaremos de nossos “benefícios” em nome da liberdade dessas pessoas?

Acredita que os descendentes destas pessoas escravizadas deveriam ser compensados de alguma forma? Se sim, como?

Com certeza, por exemplo, cotas nas universidades e concursos públicos foi um início. Se formos falar sobre compensações financeiras, talvez a lei de terras que permitiu que imigrantes brancos pudessem ter acesso à posse de terras fosse estendida à população negra hoje. Reforma agrária seria bem interessante. Outro elemento importante seria o direito às memórias e seu resgate memorístico, às identidades perdidas e sua reconstrução, mas tudo com muito cuidado e atenção para que não se faça de maneira esvaziada ou com viés racista.

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Por que o uso de pessoas escravizadas na construção de ferrovias, em especial a de Jundiaí, é um tema com rara divulgação?

Há grandes dificuldades de se encontrar documentação referente aos trabalhos executados na construção das ferrovias. Isso se deve, ou pelo interesse de que certas informações nunca chegassem a outros ou à posteridade por serem incriminatórias ou não havia trabalhadores escravizados empregados nas companhias. Ambas as suposições são válidas, talvez, tais documentos podem ter integrado a queima proposta por Ruy Barbosa em 1890. Em 14 de dezembro de 1890, o ministro da Fazenda Ruy Barbosa assinou um decreto que ordenava a destruição de documentos relativos à escravidão. O jornal O Estado de São Paulo de 19 de dezembro de 1890 publicou trechos dessa ordem exigindo que os registros sobre escravidão fossem enviados para a capital, onde ocorreria a “queima e destruição imediata deles”, sob a alegação de que esses registros manchavam a história do Brasil.

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