Gema de VIDRO

gema

A adolescente, com uma gema de vidro dourada, chegou de mansinho e me disse que desejava me oferecer um presente. Na impossibilidade de comprar, entregou-me a gema que, segundo ela, guardava desde a infância. Comovi-me.

É menina de que habita nas margens da cidade grande, em cômodos de parede-meia, nos quais se ouve sons diversos, de funk a gritos embriagados e nos quais se aspira restos de fumaças proibidas que passam pelos vãos da porta e das janelas mal colocadas. Brincou de boneca cuidando dos irmãos menores. Sabe das drogas, dos pontos de venda, do preço. De sexo já viu muita coisa. Desce por encostas para abreviar o caminho. Destemida, porém jamais a vi em situação de violência. Mantém-se serena e possui um olhar com meiguice que me encanta.

O presente, de valor inestimável, que foi direto para o coração, de certa forma intrigou-me. Desejava lhe perguntar tantas coisas a respeito. Tenho um lado “perguntadora”, nossa mãe me achava além do bom senso nos questionamentos e me interrompia. Na verdade, gosto de entender a fundo o que passa nas entranhas das pessoas, não por curiosidade, mas por compaixão.

Que significaria para ela, nos degraus do morro sem verde, uma gema de vidro dourada? Quando os acontecimentos de seu cotidiano nublavam, tentava enxergar através dela, detendo-se nos pontos brilhantes? Ou seria um pedaço de esperança em dias de luz?

Interessante que não conversamos muito, mas mantemos sintonia no abraço. Seu jeito de distância com proximidade me diz de aconchego.

Quantas meninas como ela desrespeitadas, vítimas do comércio do sexo e de abusadores, vítimas do menosprezo, do preconceito, olhadas apenas como carne que pode ser usada ou com ela se lucrar, mesmo que ela guarde consigo uma gema dourada de vidro.

Em princípio, não quis aceitar. Muito significativa em sua vida guardá-la desde os oito anos. Ela insistiu. Percebi que ficaria decepcionada se não levasse comigo. Está aqui, na minha frente.

Talvez entregar-me essa peça significaria me oferecer lampejos de sua infância, de instantes que participou conosco e foram de alegria.  Ou ainda a certeza de que a vejo com humanidade, crença e respeito, como todos os seres humanos devem ser olhados.

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Tenho do lado esquerdo do computador, dois quadros com cópia de foto do magnífico Sebastião Salgado. Presente inspirador de minha cunhada há mais de 20 anos. Duas meninas de olhos tristes, que peregrinavam com os pais pelo Paraná em busca de um pedaço de terra. A foto virou capa do livro “Terra” de Salgado. A adolescente traz com ela traços dessas meninas.

Guardo como relíquia seu mimo que veio da infância, contudo, mais do que isso, deixo-o à vista para jamais me esquecer que o Céu me chama, cada dia mais, ao compromisso com meninos e meninas considerados anônimos sociais nos becos, nos núcleos de submoradia, nas vielas e que sustentam suas emoções, enquanto é possível, numa gema dourada de vidro.(Foto:Leah Kelley/Pexels)

MARIA CRISTINA CASTILHO DE ANDRADE

Com formação em Letras, professora, escreve crônicas, há 40 anos, em diversos meios de comunicação de Jundiaí e, também, em Portugal. Atua junto a populações em situação de risco.

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