O sinal toca, e os alunos entram em fila, cada um com seu fone de ouvido, seu celular em mãos, seus olhos grudados em telas pequenas que parecem carregar o mundo, mas frequentemente não carregam nem a si mesmos. A escola abre suas portas, mas não sabe exatamente o que fazer com o que entra. No quadro de avisos, ainda está fixado o cartaz do último projeto de orientação profissional: “Sonhos e Carreiras – Descubra sua Vocação”. A professora Ana lembra das respostas escritas no mural interativo. Quase nenhuma dizia “quero ser professor”, “quero ser cientista”, “quero ser pesquisador”. A maioria escrevia com letra caprichada, em caneta colorida: “Quero ser influencer”, “Quero ser famoso”, “Quero viver de internet”. É a geração Luz de Ring Light. A expressão tem a ver com o brilho emitido pelos celulares…
E havia uma honestidade desarmada nessas respostas. Nenhuma ironia. Nenhuma rebeldia. Era apenas o reflexo do que veem, do que absorvem, do que acreditam ser possível. A escola, no entanto, ainda funciona como se estivéssemos nos anos 1990: sonha formar advogados, médicos e engenheiros. Ainda se organiza como se o vestibular fosse o grande clímax da vida acadêmica. Como se todo aluno desejasse trilhar um caminho retilíneo, previsível, engravatado.
Mas a realidade pulsa em outro ritmo. Nossos alunos vivem no tempo dos vídeos curtos, das opiniões rápidas, dos likes instantâneos. Sonham com milhões de seguidores, com parcerias, com unboxings patrocinados. Esta geração deseja ser vista, aplaudida, reconhecida. Querem fazer sucesso — ainda que não saibam exatamente no quê. O mais inquietante é que muitos deles têm talento. São carismáticos, criativos, espontâneos. Sabem editar vídeos, gravar roteiros, inventar piadas. Mas lhes falta algo essencial: conteúdo. Referência. Leitura. Mundo. Querem ser influência, mas ainda não têm repertório para influenciar.
A escola, por sua vez, tenta contê-los. Propõe feiras de profissões, simulações de vestibulares, palestras com especialistas. Mas raramente propõe escuta. Não pergunta o porquê desses desejos. Não mergulha na complexidade dessas escolhas. Prefere dizer que “isso não é futuro”. Que “isso não dá dinheiro”. Que “ninguém vive de internet”. Como se fosse possível deter a correnteza com uma mureta de advertências.
Ana reflete, em silêncio, enquanto corrige as redações da turma do 9º ano. O tema era: “Minha profissão dos sonhos”. Um aluno escreveu: “Quero ser youtuber porque quero que as pessoas me ouçam. Em casa ninguém me escuta. Na escola ninguém me entende. Mas no vídeo, todo mundo presta atenção”. E ali, entre erros gramaticais e frases desconexas, havia uma verdade que nenhum curso técnico ensina: a necessidade de existir. De ser visto. De ser validado. De fazer parte de algo.
A escola não sabe o que fazer com essa geração que não quer mais seguir carreiras tradicionais. E, em muitos casos, nem precisa querer. O mundo mudou. A economia mudou. As formas de trabalho se transformaram. Mas a escola continua insistindo em formar “bons profissionais”, sem antes formar sujeitos. Gente. Pessoas com densidade, com pensamento crítico, com alma.
Influencer não é profissão fácil. Não deveria ser encarada como atalho. Exige criatividade, estratégia, estudo. Mas os alunos não sabem disso. Porque ninguém os ensina. E ninguém os ensina porque os adultos, em geral, desdenham. Riem. Zombam. “Quer ser influencer? Vai estudar!”, dizem — sem perceber a contradição.
Estudar o quê? O mundo desta geração de alunos não está nas enciclopédias, está no feed. E se o professor não entra nesse mundo para dialogar, para questionar, para propor caminhos possíveis, quem vai? Os algoritmos?
Ana se pergunta: não seria mais produtivo ensinar o aluno a ser um influenciador leitor a ser um youtuber com referências? A ser um criador de conteúdo com responsabilidade, senso estético, visão social?
Mas isso exigiria que a escola quebrasse o espelho. Que deixasse de se olhar apenas em suas tradições, e passasse a ver o que de fato pulsa nos corredores. Exigiria que os currículos conversassem com o presente, sem abrir mão do que importa: pensamento, ética, escuta, produção intelectual.
É difícil. Mas mais difícil é fingir que nada mudou.
Hoje, os alunos sabem o nome dos influenciadores de moda, de humor, de games. Reproduzem bordões. Conhecem truques de edição. Mas não sabem quem foi Clarice Lispector. Nunca ouviram falar de Lima Barreto. Não sabem o que é argumentar, o que é defender uma ideia, o que é construir um texto.
Esta geração quer voz, mas não sabe usar a linguagem. E a linguagem é o que dá forma ao mundo. Enquanto isso, a escola se perde entre resistências e negacionismos. Parte dos professores tenta resistir com os clássicos. Outra parte tenta fazer adaptações que beiram a caricatura. “Vamos gravar um podcast sobre Camões”, diz alguém. Os alunos bocejam. Não é disso que estão falando. Querem algo que tenha a ver com eles, não apenas com o passado. Querem presente. Querem se reconhecer nas aulas.
Talvez o caminho esteja no meio. Nem negar a modernidade, nem se curvar a ela. Mas fazer dela uma ponte. Uma via de mão dupla. Ensinar os alunos a serem protagonistas, sim. Mas protagonistas de si, com estofo, com consciência, com propósito. Isso exige uma escola menos normativa e mais dialógica. Uma escola menos ansiosa por resultados e mais aberta à escuta.
VEJA OUTROS ARTIGOS DO PROFESSOR AFONSO MACHADO
SAÚDE É UMA ESPERA COM DATA INDEFINIDA
Ana encerra a correção das redações. Fecha a pasta e olha para a sala vazia. Ali, entre carteiras grafitadas e cartazes desbotados, ainda vive um sonho: o de formar jovens que queiram mais do que likes, que queiram dizer algo ao mundo. Que esta geração descubra que a influência real não vem da fama, mas do saber. Da experiência. Do afeto. Da escuta.
Mas para isso, a escola precisa se influenciar também. Precisa se deixar transformar. Afinal, ensinar não é moldar. É provocar. E talvez esteja aí a chave: provocar os alunos a serem mais do que o espelho do que consomem. A serem criadores do que ainda não existe. A serem, de fato, vozes com algo a dizer.(Foto: khezez | خزاز)

AFONSO ANTÔNIO MACHADO
É docente e coordenador do LEPESPE, Laboratório de Estudos e Pesquisas em Psicologia do Esporte, da UNESP. Leciona, ainda, na Faculdade de Psicologia UNIANCHIETA. Mestre e Doutor pela UNICAMP, livre docente em Psicologia do Esporte, pela UNESP, graduado em Psicologia, editor chefe do Brazilian Journal of Sport Psychology.
VEJA TAMBÉM
PUBLICIDADE LEGAL É NO JUNDIAÍ AGORA
ACESSE O FACEBOOK DO JUNDIAÍ AGORA: NOTÍCIAS, DIVERSÃO E PROMOÇÕES










