HISTÓRIA e Literatura: diálogos entre Clio e Calíope

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A relação entre História e Literatura é tão antiga quanto complexa, um intricado bordado no qual os fios do fato e da ficção se entrelaçam, desafiando a simples separação. Ambas são narrativas, ambas são construções humanas que buscam conferir sentido à experiência no tempo. Enquanto a História, sob a égide da musa Clio, aspira à verdade dos acontecimentos, a Literatura, domínio de Calíope e suas irmãs, aspira à verdade humana – aquela que reside na profundidade da condição, e não necessariamente na superfície do evento.

No alvorecer da tradição ocidental, essa distinção era tênue. Heródoto, “Pai da História”, e Homero, arquiteto da épica, compartilhavam um mesmo palco. A Ilíada não era lida como fantasia, mas como um repositório de valores, identidade e uma certa memória ancestral. Tucídides, por sua vez, embora buscasse um rigor metodológico ao reconstruir a Guerra do Peloponeso, não abria mão dos discursos construídos – artifício literário por excelência para explorar motivações e contradições. Aqui, a narrativa histórica e a força retórica eram faces da mesma moeda: a persuasão. O objetivo não era apenas informar, mas formar o cidadão, incutir areté (excelência) por meio do exemplo, seja ele factual ou emblemático.

A grande cisão epistemológica ocorre com o advento do positivismo no século XIX. A História se alçou ao status de Ciência, adotando o paradigma da objetividade, da documentação irrefutável, da renúncia à “imaginação” (será?). Leopold von Ranke e sua busca pelo “como realmente foi” (wie es eigentlich gewesen) ergueram um muro. Do outro lado, a Literatura, especialmente o romance realista, paradoxalmente apropriou-se do desejo de retratar a totalidade da vida social com uma minúcia que a historiografia academicista muitas vezes negligenciou. Balzac, em A Comédia Humana, e Tolstói, em Guerra e Paz, criaram panoramas históricos de profunda verossimilhança, no qual a “verdade” dos personagens e seus contextos sociais falava mais alto à compreensão de uma era do que muitas cronologias oficiais.

O século XX, contudo, promoveu uma reconciliação crítica. A École des Annales na França ampliou o leque do historiador para incluir mentalidades, sensibilidades e estruturas de longa duração – territórios onde a literatura se mostra uma fonte primária inestimável. Como acessar o mentalité do homem medieval sem a Chanson de Roland? Como compreender o trauma da Primeira Guerra Mundial sem os romances de Erich Maria Remarque ou a poesia de Wilfred Owen?

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Foi, porém, com a virada linguística e o pós-estruturalismo que o diálogo se tornou mais profundo e desestabilizador. Pensadores como Hayden White, em Meta-história, argumentaram de forma contundente: a escrita da história não é um reflexo transparente do passado, mas uma construção textual profundamente literária. O historiador, consciente ou não, emprega tropos narrativos (metáfora, metonímia, ironia), escolhe enredos (romance, tragédia, sátira) e impõe uma trama aos eventos caóticos. A fronteira, portanto, não estaria entre fato e ficção, mas entre diferentes regimes de veracidade e convenções discursivas. Continua…(Foto: George Sharvashidze/Pexels)

JOSÉ FELICIO RIBEIRO DE CEZARE

Mestre e doutorando em Ensino e História de Ciências da Terra pelo Instituto de Geociências da Unicamp. Membro da Academia Jundiaiense de Letras. Pesquisador, historiador, professor, filósofo e poeta. Coeditor da Revista literária JLetrasPara saber mais, clique aqui. Redes sociais: @josefelicioribeirodecezare.

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