O INCISIVO CENTRAL, a Border Collie e a jovem simpática

incisivo central

O meu incisivo central quebrou. De novo. Não quebrou por inteiro. Na verdade, o que geralmente desce goela abaixo, sem que eu perceba, é a restauração. Como sempre, depois de algum tempo o conserto se vai com os alimentos mais insólitos. Nada de torresminhos, piruá(o milho da pipoca que não estoura) ou um pé de moleque vencido. Este remendo dentário já caiu até com miolo de pão.

É óbvio que cada novo buraco no incisivo central vem acompanhado de uma enxurrada de palavrões. Anos atrás, a restauração ficava firme e forte por um ou dois anos. Mas de uns tempos para cá, o pedaço de dente falso não se aguenta mais do que três, quatro meses. E cada vez que a restauração cai, parte do dente de verdade é consumida pelo motorzinho do dentista que precisa preparar o local para receber mais massa e cimento. Para isso, milímetros de osso e esmalte viram poeira.

O fato é que a gambiarra no meu incisivo central quebrou de novo e desta vez, ao contrário das outras, o socorro demorou a chegar. Começo de ano tudo é complicado. Azar o meu que tive de ficar mais de uma semana com uma janela aberta num dos dentes principais do sorriso. Não chegou a ficar 1-0-1. Mas é claro que não ficou algo bonito de se ver. Mais sincero dizer que a ausência da restauração deixa o sorriso engraçado. Para os outros.

Contudo, esta foi a primeira vez que o buraco no meu incisivo central me fez parar e refletir profundamente. O estopim para essa imersão se deu numa caminhada com minha Border Collie. Não é raro que a cadela chame atenção. Ela é bonita mesmo. Os fanáticos por cães querem acariciá-la. E ela se deleita com o carinho alheio.

Numa destas manhãs vínhamos eu, meu dente quebrado e a cachorra pela calçada de uma importante via do bairro da Colônia. Caminhada boa, daquelas que queimam boa parte da cerveja consumida no ano anterior. No sentido contrário, uma jovem aparentando seus 20 e poucos anos encantou-se com a minha acompanhante. Sacou o celular e mostrou uma foto da cadela de estimação, da mesma raça. Deitou falação sobre a inteligência e temperamento carinhoso do animal.

Embora tivesse uma máscara no bolso(e aqui faço um mea culpa) simplesmente esqueci de colocá-la antes de abrir a boca e responder à simpática moça. Trocamos algumas poucas palavras que foram suficientes para que ela certamente observasse o buraco negro entre meus dentes. Ela, gentil, não deu nenhum sinal de que a cena era engraçada: um sujeito caminhando com uma raça de cão exótica, que prolifera em comerciais de televisão, sem parte de um dente e falando com um chiado proveniente do ar passando pela cratera dentária.

Quando cada um seguiu seu caminho, passei a matutar com os meus botões. Embora tivesse certeza absoluta de que a ausência da restauração seria comentário no trabalho, família e amigos da jovem, eu não me importei. Em outros tempos, mesmo que a conversa tivesse ocorrido com um senhor de 90 anos, estaria vermelho de vergonha até agora, desejando morrer ou nunca mais encontrá-lo nesta e na outra vida.

Não sei se isto ocorre com todos. Eu percebo que – no meu caso – o passar do tempo vai retirando as camadas de vaidade tola que em cada época da vida teimamos em dar uma demão. São besteirinhas, bobagens, cretinices que em nada mudam para melhor a vida da gente. O formato da barra da calça. O modelo do carro. Exibir-se nas redes sociais sem nenhum motivo. Gastar uma fortuna num restaurante top. Tomar água de grife. Exemplos de vaidade não faltam a partir do momento em que se chega à conclusão de que tudo isso é futilidade. O ser humano precisa de comida, água, abrigo, amor.

Os dentistas que me perdoem, mas até dentes temos em excesso. Milhares e milhares vivem com pouquíssimos ou nenhum dente. São pessoas com vida sofrida, casas humildes e raras vezes fazem uma refeição ao dia. E são, geralmente, as que têm o sorriso mais fácil, as que menos reclamam das inutilidades que não conseguem ou se envergonham da própria aparência. Estão preocupadas apenas em viver e talvez o façam de forma mais completa do que doutores e ricaças que têm as bocas escancaradas, cheias de dentes e, na verdade, só estão esperando a morte chegar…(Foto: difundir.org)

marco_sapia

MARCO ANTÔNIO SAPIA

É jornalista responsável pelo Jundiaí Agora

VEJA TAMBÉM

ESPAÇO PARA ERRAR AJUDA NAS DESCOBERTAS, AFIRMA EX-ALUNO DA ESCOLA PROFESSOR LUIZ ROSA

ACESSE FACEBOOK DO JUNDIAÍ AGORA: NOTÍCIAS E DIVERSÃO

PRECISANDO DE BOLSA DE ESTUDOS? O JUNDIAÍ AGORA VAI AJUDAR VOCÊ. É SÓ CLICAR AQUI