INDAGAÇÃO

indagação

O moço, com ar de indagação, puxou a cadeira na minha frente. Alcoolizado. A perna trêmula. Pacotes e um agasalho nos braços. Aparência de quem passara a noite na rua. Não é a primeira vez que me procura para falar. Ouço-o comovida. Tão jovem! Nem sei, do tempo que o conheço, se chegou a ter sonhos. Que judiação. O álcool o corrói, assim como o desencanto.

Dessa vez me contou que estava “pedido”. Se eu não fiquei sabendo o que acontecera na noite anterior. Contou-me uma história confusa. O indivíduo que o perseguia, no meio do caminho se suicidara e agora afirmavam que fora ele. Repetia: “Cadeia não”, ao mesmo tempo em que me perguntava aquilo que eu tinha informação a mais sobre o fato. Desconhecia até ele chegar e continuei não sabendo de nada depois da saída dele.

Em meio à história, no entanto, me relatou que para não correr risco foi se esgueirando pelo muro e abaixou em uma árvore. De repente, percebeu que era a árvore da vida. Brilhava muito. Nela estava sua família inteira, desde os avós. Alegrou-se demais por encontrá-la. Desenhou no ar uma árvore genealógica. Andava há tempo atrás da árvore da vida e nem imaginava que poderia estar tão próxima dele. Em seguida, voltou a insistir no problema com o moço que se suicidara. Cadeia não, me dizia.

Que judiação! Em meio aos seus medos, o que buscava era aconchego e cuidados.

Antes de ir embora, me falou que havia homens trabalhando naquela rua. Pediu que não removessem a árvore da vida. Cercou-a com pequenos pedaços de madeira que encontrou. Pretendia trazê-la para mim.

Tudo tão significativo. Comoveu-me demais! Ah, que vontade de pegar gente destruída por sua história, colocá-las no colo e recuperar seus dias com cantigas de ninar!

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COM O TERÇO NAS MÃOS

Estou lendo “As Pequenas Doenças da Eternidade” do escritor moçambicano Mia Couto(Companhia das Letras). No conto “Submissa Desobediência” há uma colocação que me faz lembrar do moço:

– Não é o tempo que cura – vaticinava a minha velha mãe, as mãos apoiadas no cabo de vassoura. E acrescentava, num interminável suspiro:

– Não esperes nada do tempo, minha filha. A vida. A vida é quem cura as feridas do viver.

Algumas situações são bem assim. O tempo passou pelo moço e ele ignorou com suas lamúrias, às vezes com razão, mas que, além do desabafo, não acrescentam nada. “A vida é quem cura as feridas do viver”, se a pessoa se dispuser a existir, além da sobrevivência das amarguras.(Foto: Tim Mossholder/Pexels)

MARIA CRISTINA CASTILHO DE ANDRADE

É professora e cronista

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