Em nosso país, a liberdade religiosa, consagrada como direito fundamental na Constituição Federal de 1988, continua sendo fruto de grandes embates, tabu e “cancelamentos virtuais”. Por qual razão algo tão íntimo, profundo e pessoal, por vezes, vira tema de debates, manchetes de jornais, motivo de desafetos e até caso de polícia? O fato é que a fé alheia gera intolerância, curiosidade, palpites, julgamentos e até “status”; vide a bio de vários perfis de redes sociais nas quais o titular coloca sua religião, quase como um selo de boa índole (ou não, a depender do julgador).
A repressão às práticas religiosas possui raízes profundas na evolução das civilizações. A história antiga traz diversos exemplos de guerras, conquistas de territórios e imposição da fé do vencedor, muitas vezes, com apagamento (ou tentativa) de toda a história do povo dominado. Na antiguidade o apagamento das religiões e crenças de um povo dominado fazia sentido, se pensarmos que as crenças também fazem parte do sentimento de pertencimento, de união, de coletividade. Ao enfraquecer os elos de um povo, a força dele para revidar também era enfraquecida.
Trazendo para nosso contexto, esse fenômeno remonta ao período colonial, quando a imposição do catolicismo pelos colonizadores portugueses resultou na perseguição sistemática às religiões indígenas e, posteriormente, às práticas religiosas africanas trazidas pelos escravizados. Durante o período imperial (1822-1889), o catolicismo manteve-se como religião oficial do Estado, conforme estabelecido na Constituição de 1824. A junção da religião e do Estado, como poder supremo e uno é antiga, fez parte da história de quase todos os povos. A ideia de que o Rei era escolhido por Deus (o Deus cultuado por aquele povo, não necessariamente o Deus Cristão) trazia legitimidade, obediência e legitimidade para punição àquele que afrontasse a vontade divina.
Essa era a história contada aos súditos; por trás das luxuosas cortinas a realidade era outra: envenenamentos, mortes suspeitas, casamentos entre familiares próximos como irmãos, tios e sobrinhos, tudo calculado racionalmente pela e para a manutenção do poder. Voltando aos nossos confins, com a promulgação da primeira Constituição republicana (1891), foi estabelecida a separação entre Igreja e Estado, garantindo formalmente a liberdade de culto. Em tese, a manifestação de fé estava livre da punição do Estado e poderia ser exercida livremente, mas quanto engano!
Nem o Estado, nem as pessoas digeriram bem essa “nova realidade”: praticar outras religiões era muito malvisto, motivo de desavenças, preconceito e segregação. Os praticantes de outras religiões que o digam, pois, estes continuaram sendo perseguidos. Como exemplo, cito o Código Penal de 1890 que criminalizava práticas como o “espiritismo, a magia e seus sortilégios”, dispositivos frequentemente utilizados para reprimir terreiros de candomblé e umbanda. Essa criminalização perdurou até meados do século XX, deixando marcas profundas na sociedade brasileira, fortalecendo o preconceito, tratando com violência e repressão práticas que, supostamente, eram livres.
A Constituição Federal de 1988 representou um marco na proteção da liberdade religiosa, estabelecendo em seu artigo 5º, inciso VI, que “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”.
Complementarmente, a Lei nº 7.716/89 (Lei Caó) tipificou os crimes de preconceito e discriminação, incluindo a discriminação religiosa. Em 1997, a Lei nº 9.459 alterou a Lei Caó, incluindo especificamente a discriminação religiosa como crime autônomo, com pena de reclusão de um a três anos e multa.
As práticas de intolerância podem configurar diversos crimes: Discriminação religiosa (Art. 20 da Lei 7.716/89); Injúria racial/religiosa (Art. 140, §3º do Código Penal); Dano ao patrimônio religioso (Art. 163 do Código Penal); Destruição de templos e objetos sagrados; Vilipêndio a culto religioso (Art. 208 do Código Penal), entre outras disposições esparsas pelo nosso ordenamento jurídico.
As vítimas de intolerância religiosa podem buscar reparação por danos morais e materiais, conforme previsto nos artigos 186 e 927 do Código Civil. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem consolidado jurisprudência no sentido de que a discriminação religiosa gera direito à indenização por danos morais.
Contudo, mesmo amparados pela Lei, a realidade ainda é desafiadora, o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC) divulgou relatório mostrando que foram registradas, no ano passado, 2.472 denúncias de casos de intolerância religiosa pelo canal Disque Direitos Humanos (Disque 100), coordenado pela pasta. É importante frisar que estes números não incluem registros policiais, através de boletins de ocorrência, por exemplo.
O número representa uma alta de 66,8% em relação às denúncias de intolerância religiosa feitas em 2023 (1.481). São quase mil denúncias a mais em 2024, anunciou o MDHC. Se considerados os dados registrados entre 2021 e 2024, o crescimento das denúncias de violações foi de 323,29%.
Durante todo o ano de 2024, as pessoas violadas em sua fé, foram identificadas como praticantes dos seguintes segmentos: umbanda (151), candomblé (117), evangélico (88), católico (53), espírita (36), outras declarações de religiosidades afro-brasileiras (21), islamismo (6), judaísmo (2). Em 1.842 denúncias, não houve indicação da religião. Esses dados estão disponíveis para consulta no site do Ministério, anualmente são atualizados.
A diversidade religiosa é patrimônio cultural da humanidade e deve ser protegida com o mesmo vigor com que defendemos outros direitos fundamentais. Somente através da educação, do diálogo inter-religioso e da aplicação rigorosa da legislação protetiva poderemos construir uma sociedade onde todas as pessoas possam exercer livremente sua fé, sem medo de perseguição ou discriminação.
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Na era moderna, onde “gregos e troianos” pulam suas sete ondinhas com pedidos para o novo ano, escolhem a cor da roupa da virada como um simbolismo dos seus desejos para o próximo ano, e acreditam que características da personalidade estão ligadas ao signo regente daquela pessoa, por que ainda nos incomodamos com a crença alheia?
Fica a reflexão e um ensinamento do livro mais vendido do mundo: “Amados, amemos uns aos outros, pois o amor procede de Deus. Aquele que ama é nascido de Deus e conhece a Deus(1 João 4:7)”. Desejo, indistintamente, que tenhamos um feliz 2026. Com menos intolerância!(Foto: Gemini)

GABRIELA DAYANE PIRES NOGUEIRA
É advogada desde 2013. Atualmente é Procuradora-chefe da Consultoria Jurídica da Prefeitura de Jundiaí. Também é membra da Comissão de Direito Constitucional da OAB Jundiaí e do Executivo do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher. Foi Delegada eleita pelo Conselho Municipal dos Direitos da Mulher (6ª Conferência Municipal), representante de Jundiaí na 5ª Conferência Nacional em Brasília, para políticas públicas para mulheres. Está no 9º semestre de Odontologia. Instagram: @gabrielapiresnogueira.adv
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