Linguagem Neutra: STF já disse ‘não’ à proibição

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A Lei Federal 15.263/2025 nasceu com uma missão nobre: instituir a Política Nacional de Linguagem Simples na Administração Pública para tornar a comunicação oficial clara e transparente. Paradoxo? Uma emenda oportunista inseriu, no bojo dessa legislação, um dispositivo que proíbe justamente uma forma de comunicação que busca a inclusão: a linguagem neutra. Reproduzindo esse dispositivo, a Câmara de Vereadores de Jundiaí lamentavelmente seguiu pela mesma direção no projeto de lei 13.972, de autoria do vereador Madson Henrique (PL), recém-aprovado.

Tal proibição, segundo afirmou a Associação Brasileira Linguística ao sugerir o veto ao dispositivo federal, significa “um retrocesso no âmbito dos direitos linguísticos de minorias sociais”. Afinal, a linguagem neutra é justamente a que tem como objetivo dar visibilidade e contemplar pessoas intersexo ou não binárias, cujas identidades diferem da masculina ou feminina.

Mais uma vez, portanto, a Justiça precisará intervir. O Supremo Tribunal Federal tem sido incisivo, em decisões com efeito vinculante e eficácia erga omnes: a proibição à linguagem neutra fere a garantia constitucional da liberdade de expressão e os princípios da isonomia e da não discriminação (ADPFs 1151, 1155, 1161, 1165, dentre outras). O STF também já reconheceu que “a língua é viva, sempre aberta a novas possibilidades” e que não é possível “a regulação a priori nem para impor nem para impedir mudanças sociais” (ADPF 1163 e ADI 7644 MC).

Inúmeras outras leis municipais sobre o tema já tiveram a inconstitucionalidade formal reconhecida, pelo entendimento de que as Câmaras de Vereadores simplesmente extrapolam sua competência legislativa ao ditar regras sobre a língua. Mais que uma questão legal, a resistência à linguagem neutra é um equívoco cultural e social. Afinal, ela se relaciona diretamente com o pluralismo cultural, verdadeiro patrimônio brasileiro reconhecido pelo artigo 216 da Constituição Federal, que inclui “as formas de expressão” (inciso I) e “os modos de criar, fazer e viver” (inciso II).

Em sua defesa, Jana Viscardi, doutora em Linguística pela Unicamp, salienta que a linguagem neutra é apenas uma das muitas variações linguísticas (como a norma culta e a linguagem coloquial) e que a língua se transforma com a sociedade. Ela explica, ainda, que a língua tem uma dimensão política, pois pode criar e perpetuar relações de poder e de violência. Ou incluir a linguagem de grupos vulnerabilizados, como no caso do “Pretuguês”, termo cunhado por Lelia Gonzalez para destacar a marca de africanização do Português falado no Brasil.

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A resistência à linguagem neutra é, portanto, fruto de preconceitos linguísticos e de gênero, e não de zelo pela norma. E incoerente, pois, como espécie de comunicação inclusiva, a linguagem neutra relaciona-se diretamente com a linguagem simples, já que ambas promovem igualdade e respeito ao contemplarem todas as pessoas. Ao que consta, não existiu qualquer tentativa legislativa de proibir a transformação do vossa mercê sucessivamente em vosmecê, vancê e você. Se tivesse existido, teria fracassado. Também está certamente destinada ao fracasso a proibição de utilização da linguagem neutra no âmbito da Administração Pública.

LUCIENE ANGÉLICA MENDES

É graduada pela Faculdade de Direito da USP, com especialização em Direito Homoafetivo e de Gênero pela UNISANTA. Procuradora de Justiça aposentada. Advogada. Integrante do Movimento Nacional de Mulheres do Ministério Público. Associada, voluntária, palestrante e conselheira na Associação Mães pela Diversidade.

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