Outro dia, numa livraria que cheira a café e resistência, vi uma cena que se gravou em mim. Uma menina — não mais que 10 anos — folheava um livro de contos feministas para crianças. Vestia uma camiseta com os dizeres: “crie garotas corajosas”. A mãe, orgulhosa, tirava fotos para postar no Instagram. A menina sorriu, posou, e logo depois sussurrou à atendente: “Você tem o da Barbie Influencer?”. Saí da livraria com o coração dividido. Não pelo pedido — legítimo, infantil, até fofo — mas pelo abismo entre o discurso e a prática, entre a liberdade oferecida e os critérios esquecidos. Porque a verdade é que estamos criando meninas com asas, mas sem bússola. Meninas que podem tudo — mas não sabem o que querem. Meninas livres — mas presas à aprovação. Meninas empoderadas — mas exaustas de tentar dar conta de tudo.
No século XXI, a educação das meninas se tornou um campo minado. É necessário empoderar, claro. Mas empoderar com o quê? Com quais critérios? Com base em quais valores? Com quais modelos, se os antigos ruíram e os novos ainda não se firmaram? Nos anos 90, bastava dizer “minha filha não vai brincar de boneca, vai brincar de Lego”. Isso já parecia revolucionário. Hoje, não basta. Agora esperamos que as meninas sejam líderes, inovadoras, multiculturais, politizadas, fluentes em inglês, e ainda, de preferência, bonitas — mas naturalmente. Boas de matemática, mas suaves no trato. Livres, mas sempre comportadas. Inteligentes, mas acessíveis.
É um paradoxo brutal: oferecemos a elas o universo, mas não explicamos o caminho. Dizemos “seja o que quiser” sem ensinar a diferenciar o que é desejo genuíno e o que é imposição cultural disfarçada de liberdade. Os critérios se perdem na avalanche de estímulos. Influencers com milhões de seguidores ditam padrões de comportamento, consumo, beleza e até suposta autenticidade. E as meninas, ainda em formação, tentam adaptar-se a tudo — sem saber a quem devem agradar: a si mesmas, aos pais, à internet?
Durante muito tempo, educar meninas significava prepará-las para a obediência, o cuidado, o silêncio e o sacrifício. Era um pacote sóbrio e cruel. Elas aprendiam, cedo, a servir, ceder e sorrir. Os critérios estavam dados — e, por mais perversos que fossem, eram claros. Sabia-se o que se esperava delas. Hoje, esses modelos foram — felizmente — colocados em xeque. Mas no lugar do manual de submissão, entregamos a elas… um vazio. Um amontoado de discursos motivacionais, frases de autoajuda e filtros de Instagram. “Você é incrível”, “Você pode tudo”, “Você é sua própria rainha”.
Sim, ela pode tudo. Mas precisa saber o que quer. E para saber o que quer, precisa de referências, reflexão, freios e critérios. Critérios para saber que nem tudo o que brilha é conquista. Que nem toda “liberdade” é libertadora. Que nem todo “empoderamento” é saudável. Que nem toda “escolha” é realmente livre. Mas educar com critérios exige coragem. Coragem para dizer “isso não”, “isso não serve”, “isso não combina com quem você é ou quer ser”. Coragem para sustentar valores em meio ao ruído. Coragem para suportar o choro da filha contrariada — e mesmo assim manter o limite.
Vivemos na era da escolha. Tudo é optativo. Tudo é possível. Mas nem tudo é desejável. Oferecer escolhas sem desenvolver discernimento é como entregar um carro potente a quem ainda não conhece o freio. É o que temos feito com muitas meninas. Elas sabem seus direitos, mas não sabem suas prioridades. Sabem lutar, mas não sabem por qual causa. Sabem dizer “não”, mas não sabem quando dizer “sim”.
Isso é um problema. Porque sem critério, toda escolha vira impulso. E sem reflexão, toda liberdade vira cilada. Meninas têm sido educadas para vencer, mas nem sempre para pensar. São incentivadas a superar os meninos nas provas, a liderar grupos, a brilhar. Mas pouca gente pergunta: o que as toca? O que as angustia? O que as define — para além da performance?
Critério, no fundo, é isso: saber o que nos guia, o que nos molda, o que importa. E critério se aprende. Com exemplos. Com limites. Com pausas. Com perguntas sem respostas prontas. Há também o problema da autoridade. Muitos pais e mães, com razão, rejeitam o modelo autoritário com que foram criados. Mas, sem perceber, foram para o extremo oposto: agora perguntam tudo, negociam tudo, temem contrariar. Tornam-se amigos, consultores, parceiros — tudo, menos educadores.
É claro que diálogo é importante. Mas meninas não precisam de pais que bajulem: precisam de adultos que sustentem o que dizem. Que ofereçam referências. Que transmitam firmeza sem violência. Que saibam dizer “isso não é adequado” — sem culpa. Uma menina educada com critério entende que valor e desejo não são a mesma coisa. Que nem tudo o que é tendência é bom. Que ser autêntica às vezes dói. Que pensar por si mesma dá trabalho. Mas ela aprende, com o tempo, a confiar na própria bússola.
A educação das meninas no século XXI precisa preparar para um mundo competitivo, sim — mas também confuso, volátil, emocionalmente exaustivo. Precisamos ensinar nossas meninas a fazer boas perguntas, a desconfiar dos discursos fáceis, a identificar o que as aprisiona mesmo quando se apresenta como “libertador”.
Ensinar critério é ensinar ética. É ensinar empatia. É ensinar que a liberdade verdadeira não está em seguir qualquer caminho, mas em reconhecer qual estrada tem sentido. Se não fizermos isso, estaremos criando meninas com autoestima inflada e autoconhecimento raso. Prontas para se promoverem, mas frágeis ao primeiro “não”. Donas de si no discurso, mas vulneráveis na prática. Meninas que voam — mas não sabem onde pousar.
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Educar meninas com critérios adequados no século XXI é nadar contra a maré. É resistir ao imediatismo. É cultivar o silêncio no meio do barulho. É priorizar o sentido em vez da aparência. É dizer menos “você pode tudo” e mais “você não precisa tudo”.
Que saibamos devolver às nossas meninas o direito de errar sem serem canceladas. O direito de duvidar sem se perderem. O direito de escolher com sabedoria. E que saibamos ser, para elas, faróis — não GPS. Que iluminam o caminho, mas não o impõem. Que acolhem suas quedas, mas não deixam de mostrar onde há buracos. Porque, no fundo, critério é isso: amor com direção. E é isso o que meninas precisam para crescer livres de verdade.(Foto: Gemini)

AFONSO ANTÔNIO MACHADO
É docente e coordenador do LEPESPE, Laboratório de Estudos e Pesquisas em Psicologia do Esporte, da UNESP. Leciona, ainda, na Faculdade de Psicologia UNIANCHIETA. Mestre e Doutor pela UNICAMP, livre docente em Psicologia do Esporte, pela UNESP, graduado em Psicologia, editor chefe do Brazilian Journal of Sport Psychology.
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