Quando fui convidado para ser articulista do Jundiaí Agora, fiquei muito emocionado e feliz, porque seria o momento de falar da Psicologia do Esporte e de minhas atividades como pesquisador e docente da UNESP, mas aos poucos fui me dando conta de que seria possível escrever sobre mais coisas. Que o desafio se estabelecia na medida em que eu me deparava com questões do cotidiano que me tocavam. Que a empreitada estava em ser astuto e atento ao meu contexto social e tirar dali as questões de fundo, que norteavam a semana ou que foram notícias e que mereciam novos olhares. Dilemas de uma mente impertinente.
Pior (ou melhor), amigos passaram a me incentivar e a me cobrar posição diante de alguns fatos; comecei a ser o “cara que escreve naquele jornal”, em minhas idas ao Russi, ao centro da cidade, ao comércio e, hoje, até na feira publica.
Por quê pior (ou melhor)? Porque a responsabilidade fica maior e os zelos ficam mais acirrados. Morro de medo de escrever errado ou confuso: não poderia de forma alguma denegrir a memória de meus grandes mestres. Imaginem se professora Jezabel ou Beni ou Paulo Vieira se deparassem com um erro, leve que fosse, em um texto meu? Eu morreria de vergonha e seria motivo de muita explanação por parte de cada um deles.
Além deste aspecto, a coerência da escrita. A articulação da mensagem com o foco principal e os intermediários. O novo e o rotineiro, mas profundo. Isto tudo me passou pela cabeça e me vi numa emboscada que eu próprio preparei: sei que não sou fácil, que minha acidez às vezes vai além do palatável. Mas sei que sou coerente e justo. Preciso mediar estas partes.
Também sei que sou um contumaz leitor e que passo bem por três bons jornais diários e mais as revistas semanais (desde as mais comprometidas até as mais descoladas) e que vasculho notícias internacionais nos vários jornais estrangeiros pela internet, o que não me dificultaria escrever sobre isto ou aquilo. No entanto a questão de fundo é: o que me interessa vai interessar a mais alguém?
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Hoje, na boca da aposentadoria, já olho para alguns problemas e não os enxergo, talvez pela cronicidade que assumiram e pela maneira como a sociedade os absorvem; acredito que neste mote seguem as discussões sobre os partidos políticos, sobre os desvios de verbas, sobre prisões e solturas. Minha compreensão me leva a crer que a questão esteja em outro patamar e que seja preciso muito mais do que cinquenta por cento mais um da sociedade para resolver: trata-se de um desvio de caráter.
Diante do desvio de caráter, não há cristão que dê conta de lutar ou bradar ou desviar. Ele se instala e se apropria de determinado status que permite uma governabilidade da situação posta, da maneira mais sutil e rotineira, de modo a que todos se sintam constrangidos diante dele e nada se altera, porque o sem-caráter é sem-caráter. Não se toca.
Em outras situações, sou o que levanta bandeiras, que sai às ruas, que manifesta e brada e grita. Sou sim. Desde os tempos em que, bem jovem, lecionei no magistério (curso do ensino médio que formava as professoras do ensino fundamental), em que enfrentávamos assembleias de pais e saíamos para a greve. Enfrentamento bravo, porque pai de aluno é do lado do professor enquanto tudo corre a favor do aluno. Ao menos sinal de um posicionamento mais crítico ou que venha a tirar o sossego familiar, eles se voltam contra os professores.
Lembro-me bem, de uma assembleia em que estava com o microfone em punho, no anfiteatro Luiz Biella de Souza, no Bispo, em que um pai me pede a palavra e pergunta: como você vem falar em greve se você tem carro? Vende seu carro. De imediato, lembro-me como se fosse agora, pensei em socar o microfone na cabeça pequena dele. Mas não respondi nada, porque a pergunta ou a investida era muitíssimo crassa e não mereceria perda de tempo.
Ouvi muito que deveríamos deixar de dar aulas e sermos metalúrgicos. Como ouvi muito que éramos uma classe privilegiada. Acabada a greve, os pais se voltavam a nós, como reais servidores do Estado a serviço da educação formal. Não posso dizer que eu acreditava nestas coisas, mas acreditava em nosso movimento e acreditava, mesmo, que alguns colegas até recebiam mais do que mereciam. E falava isso, o que me causava muitos problemas, mas era e é verdade.
Mas isso interessa ao leitor deste jornal? Será que os leitores procuram saber de fatos que interferem no desenvolvimento da nossa sociedade ou os leitores, realmente, vão atrás do título da reportagem e batem os olhos na notícia? Pelo que tenho sentido, dos meus leitores, eles querem mais. Querem saber de detalhes, sim; querem o fundo da questão. A fugacidade não é uma característica de todos a todo instante.
E então trago fatos que vivi ou que tomei conhecimento, claro que os trago com a tintura dos meus olhos e da minha percepção afetiva: falo daquilo que me toca. E ai, então, passa a morar outro dilema: e se eu for pesado demais? Geralmente, antes de mandar o texto para o Marco, passo para três ou quatro colegas, daqueles chatos, para que leiam e me balizem. Daí, sim, feitos os enquadramentos eu mando e peço: “Jundiaí Agora, confere ai se está bom, ou aborta”.
Diante disso, passei a semana revendo alguns pontos de vista. Voltei ao hospital onde fora muito mal examinado por uma jovem médica linda (aliás aqui cabe um adendo: uma leitora me escreveu dizendo que minha postura fora muito machista dizendo que a médica era linda. Pensei em responder à leitora, mas deixei passar. Se eu tivesse dito que era uma mulher horrorosa, aos olhos desta leitora eu continuaria sendo machista. Então pensei em, numa próxima oportunidade, pedir a ela que venha a minha casa me ajudar a acertar algumas coisas, por ordem em algumas gavetas, organizar minha biblioteca, já que ela estava com tempo de sobra para se preocupar com as coisas que eu escrevo).
Bem, voltei ao hospital em busca da médica. Não tive sorte da primeira vez. Mas na terceira volta, porque eu tenho fé e sou persistente, encontrei-a e fui direto ao assunto: disse que ela devia ter se equivocado, que o quadro era grave, na noite em que procurei ajuda especializada e que ela poderia ter causado um problema de saúde mais serio, caso eu acreditasse no diagnóstico enviesado dela. Quando ela foi falar, eu pedi para ser escutado e demonstrei saber do assunto, visto minha formação possibilitar-me tal conhecimento, ainda que rudimentar.
Ela me ouviu, depois dialogamos e sai satisfeito. Não sei se ela será mais atenta, mas sei que eu não fiquei com a batata quente em minha boca e não me calei diante do erro. Apontei o erro, comprovei-o e abri espaço para diálogo, a partir disto, o entendimento e a consequência da minha conversa ficam por conta dela. Da linda jovem médica.
Talvez algum de vocês esteja dizendo: esse cara é um chato. Sou. E sou um chato feliz. Luto pelos meus direitos e pelo direito daqueles que estão ao meu redor. Sou chato por querer que as coisas sejam explicadas e coerentes. Por acreditar que temos direitos iguais e por não negligenciar em meus deveres: pago meus impostos, cumpro meus deveres e respeito aos outros, desta forma, resta-me ser respeitado.
Preocupa-me o discurso da igualdade e do respeito. Pega-me e martiriza-me ouvir que somos todos iguais, visto que não somos todos iguais. Eu sou branco, você não é, eu sou idoso, você não é, eu sou míope, você não é. A igualdade que se fala é apenas a igualdade jurídica, porque há que se considerar nossas diferenças, sim. Estas diferenças é que darão o sabor e o tom de nossa sociedade.
É a partir delas que poderemos exercer nossa cidadania e nossa soberania. É pelas nossas diferenças que postulamos coisas diferentes numa mesma época ou que brigamos por princípios que outros não brigam. E viva as diferenças!!!!!
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Partindo daí e voltando ao questionamento inicial: por que não me prendo a escrever sobre Psicologia do Esporte, área em que tenho publicações e participações internacionais, deixando o cotidiano para quem é do cotidiano? Porque eu vivo no cotidiano, sou do cotidiano, atuo e recebo a atuação desse cotidiano em meu dia a dia.
Jamais aceitaria escrever um artigo de Química ou Física por não ser da área, mas poderia escrever sobre o efeito delas em minha e noutras vidas, bem como poderia escrever sobre a relação dos profissionais desta área com outros cientistas. Para tanto bastaria que me postasse a analisar as relações, então, para compreender as varias propostas de aproximação e acolhimento e rejeição e dissimulações. Sou capaz disto.
Na verdade, quando penso na semana e no que extraio dela para meus artigos, uma coisa de fato me faz feliz: escrevo sobre a Vida. A minha Vida, do meu jeito, no meu contexto e com meus cacoetes. A comunicação se faz porque trabalho as palavras, encadeio as ideias e contextualizo ao máximo tudo o que me circunda. Talvez amar a vida me permita transformar em palavras escritas aquilo que se passa em meu ruidoso cérebro impertinente. Falo e defendo aquilo que vivo. Pra que mais do que isso? (ilustração acima: claudiorecco.com.br)
AFONSO ANTÔNIO MACHADO
É docente e coordenador do LEPESPE, Laboratório de Estudos e Pesquisas em Psicologia do Esporte, da UNESP. Mestre e Doutor pela UNICAMP, livre docente em Psicologia do Esporte, pela UNESP, graduando em Psicologia, editor-chefe do Brazilian Journal of Sport Psychology.