Esta foi uma semana cheia de fatos esportivos que mereceram destaques municipais, regionais, estaduais e nacionais. Como deveria ser, num país em que faltam problemas. Estamos vivendo um momento em que não precisamos nos preocupar com dignidade nem exemplos morais, porque estamos lisos e dentro de todos os padrões de moralidade política, de segurança e social.

Somos um país sem problemas no âmbito da saúde pública; sabemos que republiquetas próximas estão sendo defenestradas por surtos de dengue e febre amarela, mas isso é coisa de gente inculta, lugares onde a pobreza avança a galope e onde os hospitais e meios de defesa da saúde pública e coletiva não avançam. Diferente daqui, perfeito oásis.

Lemos nos noticiários que em alguns locais distantes presos se rebelam e tomam as cadeias em motins que acabam em mortes, assassinatos e ordenamentos aos órgãosde segurança, que são pegos de surpresa com o crescimento do crime, visto o fato de que tais órgãos não fizeram os deveres de casa e a bandidagem conseguiu completar graduação e pós-graduação em suas especializações.

Aumentos em combustível, contas de energia elétrica, alimentos (desta vez não percebi ainda se o preço subiu por causa da abobrinha ou do quiabo), ausência em vagas de séries iniciais, nas escolas públicas, baixo nível na educação matemática nacional, pouca leitura dos alunos do ensino médio. Diante de quadro, que mais parece um anúncio do Show de Horrores, paramos a vida para a final da Copinha, evento esportivo que se fecha na data de aniversário da cidade de São Paulo.

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Nesta Copinha tivemos dois fenômenos que mereceram destaque: um atleta com documentação falsificada, que chega as semi-finais com nome falso, trajetória obscura e, hoje, desaparecido no estado de São Paulo. Outro fenômeno foi a disputa do título, entre a equipe corintiana e a de Batatais, cidade do interior de São Paulo, sem tradição na competição.

Do primeiro fenômeno, pouco se pode falar, diante do ocorrido. Atleta se apresenta com documentação completa e a equipe contratante aceita os documentos. Num olhar superficial, é o que ocorre em todo ambiente, seja clube, instituição financeira, escola ou médica. No entanto, os desdobramentos assumem ares de incredulidade ou ingenuidade, da maneira como avançaram: no país da delação premiada, um certo alguém telefona para outro sujeito de boa fé e questiona se aquele atleta, o da dancinha, não era aquele um que há dois anos jogara em certa equipe e que já tinha tal idade, naquela época….

São ingredientes para um Sherlock Holmes tupiniquim. E Batatais faz um jogo meio insignificante, porque seu plano já estava traçado: derrubar o Paulista, com recursos legais, eliminando-o e, assim, galgando a vaga para a final.

Bem, o que resta disto? O que fazer com o que nos fizeram? Não existem culpados, não existem pessoas que soubessem do fato antes dele explodir nas mídias, não existem informações sobre o falsário, nem se ele conseguiu a documentação sozinho ou se a fez, na calada da noite, em algum dos alojamentos por onde morou durante estes tempos. Não se tem respostas para nada e em breve o caso será um causo. No aguardo de novos casos.

Aqui ainda não se questionou o que foi feito do imaginário social do torcedor que esperava por um desfecho sensato e realístico, onde o fair-play tomasse a frente das competições esportivas, como deve ser. Mas falar em fair-play nesta altura dos acontecimentos é pior do que falar na Branca de Neve, em especial porque Branca de Neve é lenda e fair-play é norma de conduta.

Encerrando este fenômeno, não é concebível que em pleno século 21 sejamos conduzidos pela confiança e benevolência, sem a devida verificação de documentos e demais comprovantes, quando estamos fechando negócios que envolvem dinheiro e fé publica. Não é usual que acatemos tudo como verdade incontestável e caiamos na esparrela de sofrer consequências desastrosas, como a ocorrida, por haver deixado de “conferir”, de investigar a origem dos fatos.

As crianças da minha rua brincam de falar: foi juvenil. Isso significa que, em propostas grandes e sedimentadas, agimos com insensatez. De quem é a culpa? A quem cabe quitar o débito com a torcida iludida? Não sabemos, mas sabemos que é preciso agir com profissionalismo, quando se quer estabelecer vínculos profissionais. É necessário agir como os grandes quando se quer aparentar um deles. Fica a lição.

E que a nossa mídia esportiva não seja ingênua ao ponto de achar que o atleta é o único vilão, nem que a delação premiada foi a salvadora ou culpada da situação, nem que o povo esquecerá. A dor do povo, no caso da torcida, já vai longe por cada uma das coisas que este povo sofre no dia-a-dia, inclusive segue um primeiro alerta: o homem da mídia também é povo. Ele também sentiu esta dor.

No segundo fenômeno tivemos um show de “visões” com repórteres da Rede Globo, que desde os primeiros jornais se posicionavam, para aquele que seria o jogo de coroamento do campeonato juvenil. Já nos primeiros jornais da emissora, naquele 25 de janeiro, os jornalistas enumeravam os méritos da equipe corintiana, os nove campeonatos anteriores, o técnico denominado “Doutor Copinha”, a multidão de torcedores das organizadas que viriam com peso sobre a desconhecida equipe de Batatais.

O grotesco ficou por conta da conduta profissional de jornalistas formados pelas nossas boas faculdades mas que perderam o tato e o tamanho da sutileza, em suas questões. Para olhares atentos e para cabeças pensantes, eles foram no mínimo grosseiros e desaforados nos contatos com atletas juvenis de Batatais, além da má conduta de entrevistas e divagações.

Pensemos nestas falas: você já havia pensado em jogar em São Paulo? Você não acha que vai se intimidar com o estádio lotado? Serão 30 mil, 40 mil torcedores gritando contra vocês. E o jovem, sabiamente, sem sequer nunca haver recebido um treinamento psicológico respondeu, magnificamente: é, assusta sim…mas a gente veio para jogar e a torcida contrária vai servir para pilhar a gente; ela vai fazer a gente ir em cima deles….Que maravilha ouvir um jovem de 17-19 anos respondendo com tamanha propriedade a uma pergunta que foi muito mal colocada.

E tem mais: Doutor Copinha apresenta seu plano de trabalho falando que sua “equipe é bem preparada porque tem preparo físico, preparo técnico, preparo tático”. Mas Doutor Copinha, isso todas as equipes do mundo têm, até os meninos da “Chácara Valquira FC”, que se encontram a cada 15 dias, têm. O diferencial de sua equipe deve ser outro; o fato de sua agremiação ser maior e melhor requer um preparo mais esmerado e mais consistente, como outros e novos elementos, como o já debatido preparo psicológico, o preparo espiritual, o preparo intelectual (do tão propalado jogador inteligente). O que você expõe, Doutor Copinha, é da criação do futebol.

Mas, diante de alguém que aspira ao título, esta fala foi a pedra do toque: a cada comentário, no decorrer da partida, esses ingredientes eram renomeados e ressaltados, como se Batatais não tivesse em seu plantel alguém que planejasse um bom preparo físico, técnico e tático para aqueles jovens de deveriam sucumbir diante da forte, ruidosa e maciça torcida.

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Nos momentos de maior rally, no decorrer da acirrada disputa pela bola e pelo gol, os comentários elogiosos eram sempre para a equipe corintiana, que não conseguia avançar contra os desbravadores interioranos, que valentes jogavam como bravos guerreiros e não se acovardavam diante das provocações, quer sejam táticas ou da torcida. Um jornalista, ex-atleta, traz a tona o valor da defesa de Batatais, repetindo, sem eco, por algumas vezes, o quão empenhado estavam aqueles jovens.

E o final, num resultado por 2X1, a vitória do Corinthians mas com sabor de megacampeonato para os jovens valentes de Batatais, que com menos conseguiram mais. Talvez eles não tenham um fisiologista e um fisioterapeuta de renome; talvez eles não estejam na mira e nos holofotes das grandes emissoras de TV nem dos grandes jornais; talvez eles não tenham uma Arena, mas um rapadão onde se reúnem para treinar e jogar; talvez, talvez.

E onde entra a mídia? Por que não estimular o novo e o iniciante? Por que não fazer o dever de casa e conhecer as equipes, com a mesma tenacidade? Por que não se empenhar em conhecer as trajetórias de cada equipe e saber o que perguntar, sem querer por respostas óbvias em bocas de atletas juvenis, que estão a beira de um ataque de nervos? Por que não valorizar aqueles que se confrontam com gigantes?

Não se trata de um discurso socialista nem anti-capitalista; trata-se de um discurso de cultura e civilização, proposto pelo esporte do século 21. É necessário que se resgate a figura humana que faz com que o momento esportivo seja espetaculoso, sem exacerbação de um em detrimento de outro. Para isso é preciso pesquisar, inovar, transcender, talvez, mas ser diferente.

Acredito que todos os que estiveram ligados nos detalhes apontados pela televisão, neste jogo, esperavam um resultado de 3×0, 4×1…e os juvenis de Batatais foram vitoriosos, com o resultado de 2×1, em especial porque eles tinham a seu favor a forte gana de jogar contra um time de renome, forte, bem estruturado, famoso, orquestrado pelo famoso “Doutor Copinha”. Aliada a esta gana, eles trouxeram um componente psicológico precioso chamado resistência psicológica, munidos de sua determinação e acreditando em seu poder de superação.

Midiáticos e profissionais da mídia, ressaltem isto. Ressaltem o desempenho comprometido e focado a que estes jovens se propuseram, sem baixar cabeça para volume de torcida, para tamanho de cidade, para exposição: eles foram os campeões. Os meninos do interior foram os grandes astros da partida final. Entendemos que é difícil trabalhar pelos menores, mas sentimos que está na hora de lermos, ouvirmos e vermos aquilo que percebemos e sabemos ser verdadeiro.

É claro que falar de Batatais não traz Ibope nem audiência, comparando com uma subequipe do grandioso Corinthians; notório que um atrai mais visibilidade e propaganda que outro, mas valores são valores e homens são constituídos por valores. Aliás, dizem até os mais falsos moralistas que o esporte trabalha e enaltece os valores humanos, então por que perder esta oportunidade?

Parabéns jovens campeões e vice-campeões da Copinha 2017. Garotada de Batatais, vocês deram o show. Garantam-se na humildade mas persigam seus sonhos, com a mesma determinação que demonstraram em seu jogo final. Torçam por uma mídia mais justa e mais valorizadora de seus potenciais, porque vocês são grandes. (foto acima: rgdoesporte.blogspot.com.br)

 

AFONSO 2AFONSO ANTÔNIO MACHADO

Docente e coordenador do PPG- Desenvolvimento Humano e Tecnologias da UNESP. Mestre e Doutor pela UNICAMP, livre docente em Psicologia do Esporte, pela UNESP, graduando em Psicologia.