O Poder Judiciário deve dialogar com a sociedade. Não deve – porque não lhe convém e não pode – ficar encastelado, decidindo como se lá fora não houvesse um mundo tomado pela indignação. No entanto, esse diálogo não pode se dar sob outra língua que não a da lei. E isto traz incompreensões. Esta semana, deparei-me com um caso trágico que acabaria por movimentar a imprensa local. Tomada por intensa paixão, uma moça se dependurou na janela de um caminhão e tentou fazer com que o motorista parasse, implorando que não a deixasse. Mas o veículo começou a se mover lentamente e ela não soltou da janela. Dependurada, passou a caminhar em passos laterais, cada vez mais rápidas, até que tropeçou no próprio pé e caiu. Neste momento, a roda traseira do caminhão passou por cima de sua cabeça e esmagou-lhe o crânio. O motorista tentou socorrê-la, mas ela havia morrido instantaneamente.
O sentimento geral, nas redes sociais, era o de “prende, quebra e rebenta”. E não é para menos. A cena da moça morta gera um natural sentimento de que algo precisaria ser feito contra o motorista. Ele teria, então, de ser preso. Contudo, a lei impede a prisão nesses casos. O artigo 301 do Código de Trânsito Brasileiro dispõe que a Autoridade Policial não deverá prender o condutor do veículo se este prestar (ou ao menos tentar prestar) socorro à vítima.
A justiça pelas próprias mãos pode parecer tentadora a uma primeira vista. Contudo, invariavelmente, resulta em barbárie contra grupos historicamente excluídos.
Também na semana que se passou, analisei um caso em que vários homens instauraram um “Tribunal do Crime” para “julgar” três pessoas – que, ao ver deles, haviam feito algo contrário aos interesses da criminalidade. Os “réus” já haviam sido sentenciados à morte e seriam executados ali mesmo, sumariamente. Costumo ouvir, nesses casos, argumentos do tipo “deixa que eles se resolvam; é tudo bandido”. Não é bem assim.
Não faz muito tempo, na cidade de Cajamar, uma mulher havia sido roubada e gritou “pega ladrão”. Ato contínuo, duas pessoas correram e foram alcançadas pela população, que as agrediu violentamente. Isso lhe pareceu justiça? Uma daquelas pessoas de fato era o roubador – e, como roubador, merecia ser preso e julgado. O outro homem correu por medo da própria cor. Sabia que, num país racista, tinha tudo para ser acusado apenas por ser negro. Este senhor estava voltando do trabalho e foi agredido até quase morrer. Nenhuma relação tinha com o roubo. Cometeu apenas o pecado de correr pelo medo de ser negro.
O motorista, que sem querer matou a moça que o amava, não poderia ter sido preso, ainda que a população quisesse a prisão, naquele momento. Esta prisão, desejada pelo clamor (momentâneo) do público, não é o que quis o povo quando o Poder Legislativo editou o Código de Trânsito Brasileiro. Por isto o motorista foi solto (a quem interessar, a decisão, que é pública, pode ser acessada no site do Tribunal de Justiça de São Paulo, pesquisando-se pelo número do feito, processo 1500606-05.2022.8.26.0544).
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Toda lei tem sua razão de ser e seu descumprimento impede que se atinjam os objetivos almejados pelo Legislador. Neste caso, do motorista e da moça que o amava, a lei quis estimular que os condutores socorram as vítimas dos acidentes de trânsito. Fez então uma troca: quem tenta prestar auxílio, depois de um acidente de trânsito, não pode ser preso em flagrante por este acidente.
O Poder Judiciário e a sociedade devem dialogar, mas sempre nos termos da lei. A justiça de mão própria não é uma saída aceitável. Por mais que as instituições soem antipáticas, são o caminho único para que tudo não desemboque em crime e barbárie. No “olho por olho” terminaremos todos cegos e envoltos numa guerra sem explicação.(Foto: Freepik)
FILIPE LEVADA
É juiz de Direito
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