Neste sábado(5), a jornalista jundiaiense Paula Pereira(foto abaixo), que mora em Odessa, na Ucrânia, postou uma crônica falando sobre a dificuldade de entender as mudanças ao redor desde que a guerra começou. Ela detalha alterações na rotina diária que antes até passam despercebidas: portas trancadas; a falta do choro de crianças, roupas estendidas nos varais há vários dias. Confira:

Sem sair de casa, é difícil compreender o que tem mudado ao meu redor. O trajeto que meu marido faz até o mercado é curto e dele recebo a informação de que o condomínio onde moramos está todo trancado. Só entra ou sai quem tem a chave. Antes, entre a guarita e o portão por onde circulam os carros, havia uma pequena porta que sempre ficava aberta. Visitantes, entregadores e basicamente qualquer outra pessoa podia entrar sem ser interrogada sobre onde iria. Era assim a qualquer hora do dia. Aí, ao chegar à porta do prédio desejado, você interfonava para a senhora que fica na parte interna do prédio, ainda no térreo.
Quando a guerra começou, mudou a forma como podemos circular. Uma das portas que dava acesso à Faculdade de Biologia da Universidade Nacional de Odessa de Mechnikov, hoje está trancada com cadeado. Ninguém entra, ninguém sai. A porta entre a primeira guarita e o portão de carros, agora só pode ser aberta por moradores, onde são assistidos por dois guardas de olhares duros e desconfiados. Mas na porta do prédio, onde sempre fica uma senhora monitorando o que se passa nos elevadores, ainda é possível ouvir um leve “Bom dia”- agora menos enfático e mais formal.
Não ouvi mais nenhum choro de criança, nem patinhas de cachorro, mas no meio da tarde, durante o almoço, ouvi o miado forte e desesperado de um gato que era levado às pressas para longe daqui. As malas de rodinhas ainda podem ser ouvidas passando pelo corredor. Este noite, às cinco da manhã, bem enquanto tocava a sirene de ataque aéreo, mais um morador partiu. E assim tudo ao nosso redor vai ficando cada vez mais quieto, sem vida.
Da sacada observo o prédio à frente. Há pelo menos sete dias as roupas de um morador continuam secando no varal. Já nevou, já choveu, já fez sol e as mesmas peças de roupas continuam lá, talvez para nunca mais serem vestidas. As flores dos vasos que ficavam à janela de outro apartamento estão secando, algumas até já parecem sem vida. Um dos gatinhos que assistia o entardecer também já não dá mais as caras. E lá no décimo quinto andar, vejo o que parece ser um colchão em pé, em frente a janela; que talvez esteja servindo como escudo no caso de uma explosão estilhaçar a vidraça.
Lá fora, após levar o lixo para fora, meu marido reporta: “joguei o lixo e pela primeira vez o lixo ecoou tocando o fundo da caçamba”. Tem sido assim nos últimos dias. Antes, a qualquer hora do dia, a caçamba vivia cheia. Talvez as pessoas estejam consumindo menos, mas o mais provável é que poucos tenham ficado.
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Quantos mais ainda partirão? Não sei, mas sei que apesar de todo o silêncio, muitos milhares de pessoas ainda vivem neste país e passam por este período de guerra e incertezas. A Ucrânia tem uma população de cerca de 44 milhões de habitantes e dados mais recentes da ONU (Organização das Nações Unidas) reportam que cerca de 1 milhão de pessoas já deixaram o país, ou seja, apesar do silêncio, muita gente ficou. Eu sou apenas mais uma entre os milhões que ficaram.
Vivemos como se estivéssemos em uma nova quarentena, cientes de que “o agente invasor” não precisa do toque ou do contato para nos contaminar e assim, aos poucos, ele vai consumindo nossa energia, nosso sono e nossa fome. O antídoto, porém, é encontrar no meio desse caos as pequenas coisas que, por mais temporárias que sejam, nos permitem apreciar sua beleza: como um lindo pôr do sol, o desabrochar de uma flor ou o sabor da comida feita em casa.(Texto originalmente publicado no www.viajandonos30.com/Foto: fr.quora.com)
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