Na sessão da Câmara Municipal de Jundiaí do último dia 15, os vereadores de Jundiaí votaram moção de repúdio de um vereador do PL repudiando a decisão do Conselho Universitário da Unicamp que aprovou por unanimidade a criação de cotas para pessoas trans, travestis e não-binárias no vestibular para os cursos de graduação. Ativistas ironizaram a moção e o autor dele. Eles foram à Câmara protestar. Alguns usaram a Tribuna Livre para criticar a moção. Vários vereadores manifestaram apoio aos LGBTs. Mesmo assim, a moção foi aprovada. Em breve, o Legislativo de Jundiaí votará mais uma moção do mesmo vereador, agora de apoio ao projeto de lei 278/2025, do deputado estadual Tenente Coimbra, que “veda a reserva de vagas para candidatos transexuais, travestis, intersexuais e não binários em concursos públicos e instituições de ensino superior, públicas e privadas, no Estado”. Movimentos e coletivos políticos já avisaram que irão protestar na Câmara novamente. O psicólogo e sociólogo Marcelo Limão analisa esta queda de braço desigual e dá um nome à perseguição dos ditos políticos ‘conservadores’: necropolítica. A palavra “necro” tem origem no grego antigo “nekros”. Em português, ‘morto’. “Política” também vem do grego antigo e está vinculada à administração de uma cidade, estado ou país. Definições mais modernas defendem que política é meramente o exercício do poder. Analisando o último conceito, necropolítica é o exercício do poder para a morte, que não é necessariamente a morte física. Há muitas outras maneiras de ‘matar’. Repudiar a criação de cotas nas universidades ou apoiar a proibição de reserva de vagas para LGBTs são exemplos de necropolítica. Leia o artigo de Marcelo Limão e entenda como a necropolítica se manifesta e como afeta quem não se enquadra nos padrões estabelecidos pela sociedade ocidental judaico-cristã, patriarcal e hierarquizada:
Transmasculinidades e SOFRIMENTO
Recentemente, estive em uma audiência pública na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, promovida pela Frente Parlamentar LGBTI+, da bancada do deputado estadual Gabriel Cortez. As falas e discussões tiveram o objetivo de realizar uma espécie de “recorte” das vivências transmasculinas, se comparadas a outras vivências trans, tais como das pessoas não binárias, mulheres trans e travestis. A mesa, composta por especialistas da saúde, educação, comunicação, defensoria e segurança pública, além de parlamentares, discutiu a respeito dos desafios, sofrimentos, singularidades e negação de direitos desta população.
Camilo Miranda, médico psiquiatra e homem trans, trouxe um dado alarmante sobre tentativas de suicídio: as maiores taxas estão entre os homens trans e pessoas transmasculinas (50,8%). Eu acrescento, a partir da mesma fonte, que em segundo lugar estão as pessoas não binárias (41,8%) e, na sequência, as mulheres trans (29,9%).
Obviamente, o sofrimento humano não se compara. Não é uma grandeza física, mas psíquica e emocional. Mesmo assim, as estatísticas nos provocam a refletir sobre as possíveis razões para esta diferenciação. Se pensarmos que o suicídio é a maior expressão de um sofrimento psíquico insuportável, por que os homens trans apresentam maiores taxas?
Na tentativa de oferecer uma possibilidade interpretativa, vou recorrer mais à história e à sociologia do que à psicologia propriamente dita. Nossa sociedade, resultado da cultura ocidental judaico-cristã, é patriarcal e hierarquizada. Mas o que isso quer dizer exatamente? Significa, basicamente, que não temos igualdade de gênero, uma vez que o poder está concentrado nas mãos dos homens. Um poder machista, misógino, sexista e excludente. E o que sustenta a desigualdade patriarcal é sua hierarquia dos corpos, que segue a lógica em que um homem cisgênero tem mais valor que qualquer mulher.
Sendo assim, se os homens (nascidos com pênis) estão no topo do poder, a história mostra o quanto lutaram e seguem lutando para a manutenção deste status quo de superioridade estamental. Sem querer abrir mão de seus privilégios, baseiam-se na diferenciação sexual ultrapassada. Até o século XVIII, acreditava-se que o corpo da mulher cisgênero era “biologicamente” inferior ao do homem (também cisgênero) e, portanto, uma legitimação dita “natural” para a manutenção da supremacia masculina. Este mesmo modelo, ainda prevalece três séculos depois.
Pois bem, a partir dessa premissa, pensemos em um corpo nascido com vulva, útero e ovários. Imagine que esse corpo requeira para si o gênero masculino, ou seja, a categoria “homem” (trans). Como o grupo hegemônico, no topo do poder, vai reagir? O que irão fazer? Vão tentar impedir a qualquer custo, eliminando tais corpos. Se não matando diretamente, deixando-os morrer. O dispositivo que permite tal crueldade chama-se necropolítica.
E caso não seja possível eliminar tais “corpos abjetos” da sociedade, que pelo menos sejam negadas as suas existências. Como? Negando o direito à saúde dessa população, o direito à educação, os direitos sociais, os direitos civis… nega-se o uso de banheiros públicos, enfim, são muitas atrocidades.
Dentro desta mesma dinâmica do poder patriarcal, se imaginarmos um corpo nascido com pênis e testículos, mas que requeira para si uma identidade feminina, penso que a tensão existe, mas com modulação diferente. É como se operasse uma espécie de “concessão”, tipo: bom, se você está “escolhendo” deixar o status de homem, então nós não vamos impedir com o mesmo empenho. Ao contrário, até queremos ver suas performances pornográficas.
Claro que, nesta mesma sociedade patriarcal, binária e transfóbica, tanto homens trans, pessoas não binárias e mulheres trans enfrentam violências e ataques cotidianos como a necropolítica. De alguma maneira, são corpos que desafiam o padrão binário de diferenciação sexual, a partir de características genitais. Como comentou minha admirada professora Helena Vieira, enquanto o corpo de um homem trans é um intruso, o corpo de uma mulher trans representa uma traição à ordem estabelecida.
Paul Preciado corrobora essa tese, no livro “Testo Junkie”, apontando como, nas terapias de hormonização cruzada de pessoas trans, o estradiol, a progesterona e os bloqueadores de testosterona podem ser comprados nas farmácias sem receita médica. Já a testosterona, hormônio masculino por excelência, será necessário uma receita médica, daquelas que ficam retidas na farmácia que dispensá-lo. Passa-se a controlar o hormônio masculino, ao mesmo tempo que se libera os hormônios femininos. Isso faz a gente pensar, não?
Por fim, reconheço que a tese aqui desenvolvida não pode resumir um fenômeno tão complexo e multifacetado. Mas sei que pode operar como uma reflexão importante: se desejarmos uma compreensão a partir da relação entre as matrizes sociológica e psicológica do pensamento, é necessário identificar o papel central do regime patriarcal em nossa cultura, seus dispositivos e produção de violências. Mais que isso, precisamos desconstruir os padrões binários de gênero, aceitando e valorizando todas as existências humanas.(Foto: Cottonbro Studio/Pexel)

MARCELO LIMÃO
Sociólogo, psicólogo clínico, especialista em “Adolescência” (Unifesp) e “Saúde mental no trabalho” (IPq-USP). Colaborador no “Espaço Transcender – Programa de Atenção à Infância, Adolescência e Diversidade de Gênero”, da Faculdade de Medicina da USP. Instagram: @marcelo.limao/Whatsapp: (11) 99996-7042
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