O jovem escritor ainda não estava familiarizado com a notoriedade que seu último livro havia alcançado. Sentia-se desconfortável cada vez que alguém interrompia seu caminho para lhe cumprimentar pelo sucesso ou apenas para dizer que amou seu trabalho.

– A história é fascinante! Eu simplesmente não conseguia largar o livro – era o que ele mais ouvia.

A pior parte, no entanto, eram os vários compromissos que a fama lhe obrigava. Entrevistas, festas, leituras e o pior de todos: os tediosos jantares com profissionais do meio. Virou rotina ser arrastado para a casa de algum literato apaixonado que é amigo de jornalistas e críticos, que promove encontros literários e jantares de relacionamento com novos autores.

E lá estava ele no seu décimo ou vigésimo encontro, discutindo com um grupo animado, misto de fanáticos de clube do livro e blogueiros amadores sobre seus hábitos de criação. Explicava, pela septuagésima vez, o seu método de trabalho.

– Eu mato pessoas – ele responde, provocando uma breve comoção no grupo que esperava pela resposta.

– Eu procuro por pessoas que possam me ajudar com a história – ele prosseguiu – levo em consideração o aspecto físico, sexo, idade, etc. Eu as seleciono com cuidado, depois as envolvo, as seduzo, levo para onde preciso. Daí eu as mato e escondo o corpo em um freezer que eu tenho no porão da minha casa.

As pessoas se entreolham espantadas. Incrédulas. Estranhas. Incomodadas com seu próprio riso nervoso.

– Tarde da noite, quando todos estão no sono mais profundo – ele continuou, fazendo pequenos gestos com a mão que davam ritmo à fala –, eu desço até o porão e disseco aqueles corpos. Presto atenção aos mínimos detalhes, estudo com muito cuidado sua anatomia, as características da sua pele. Antes eu observo suas reações, a forma como o sangue escorre quando eu corto o pescoço ou cravo a faca no coração, se esguicha, se não. Presto atenção nas expressões dos olhos, nas reações das pálpebras. Na saliva. E quando finalmente tenho material suficiente para escrever uma história, eu descarto os pedaços – ele completou, sorvendo com atenção a reação de cada pessoa do grupo.

– E onde você costuma encontrar essas pessoas? – perguntou um crítico que ele não conhecia direito, mas que revelava com um sorriso superficial a ironia da sua dúvida. – Eu pergunto para ter certeza de que ninguém aqui corra o risco de se tornar sua próxima inspiração.

– Ah! Não. Eu não costumo matar pessoas dessa região da cidade. Sempre escolho minhas vítimas do outro lado da cidade.

– Mas eu moro do outro lado da cidade! – disse um homem que ele não fazia a menor ideia de quem era, muito menos do que estaria fazendo num jantar com pessoas do meio gótico-literário e cuja expressão revelava não estar entendendo direito a brincadeira.

– Não! Não é deste lado da cidade. É do outro – disse o rapaz, fazendo um longo gesto com o braço.

– Mas se não é daquele lado da cidade, nós voltamos para cá, onde estamos, o que coloca todos nós em risco. Exceto ele, é claro – devolveu o crítico, apontando para o homem com expressão assustada, entrando de vez na brincadeira.

– Deixe-me explicar: Nós temos este lado da cidade – o rapaz fez um largo gesto apontando para o chão, enquanto olhava para cada uma das pessoas do grupo. – Depois temos o outro lado da cidade – fez um arco com o braço, conduzindo o movimento na direção do homem assustado. – E por fim temos o outro lado da cidade – movendo o braço mais uma vez, em sentido perpendicular ao primeiro movimento. – Onde eu espero que ninguém daqui more ou essa brincadeira ficaria muito constrangedora.

Todos despencaram numa longa gargalhada para, logo em seguida, dispersar em várias conversas paralelas. O rapaz aproveitou a deixa para sair de fininho. Não gostava de ficar preso quando estava em eventos onde não conhecia quase ninguém. Preferia caminhar livre, observando com atenção cada pessoa presente, divertindo-se com as histórias que ele criava para cada uma delas.

Num canto qualquer do salão ele percebeu uma jovem senhora. Não era moça, também não era velha. Estava estranhamente vestida, rebuscada, talvez, mas sem cair no ridículo. Diferente dos trajes casuais da maioria das pessoas. Também não era alguém particularmente atraente. Não era bela, nem feia. Estava um pouco acima do peso, mas nada que a tornasse uma vítima preferencial de bullying, se todos ali estivessem numa escola.

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Ele notou que as pessoas evitavam deliberadamente aquela parte do salão. Havia um raio bem demarcado que estava higienicamente vazio. Como se a mulher exalasse algum cheiro empesteante.

Ela não parecia uma profissional do ramo. Talvez fosse uma tia chata do anfitrião, que não teve como fugir da obrigação de convidá-la para o jantar. E todos ali pareciam acostumados com ela.

O rapaz não sabe explicar por que, mas ele gosta de olhar para aquela mulher. Ele vê um dos convidados distraidamente invadir o seu espaço. Ele se diverte quando percebe que o convidado tropeça nos pés da mulher e quase cai em seu colo. Nota o convidado constrangido, se afastando, pedindo desculpas. Percebe o olhar distante da mulher, sorrindo candidamente para o convidado. Sente a suavidade e o carinho daquele sorriso. E o convidado distraído acaba por esbarrar nele, quase derrubando sua taça de vinho. Que já estava vazia.

O homem sorri sem graça e se desculpa. Oferece-se para buscar outra taça de vinho. O rapaz diz que é desnecessário e não esconde sua curiosidade. Aproveita o convidado para saber quem era aquela mulher.

E não era ninguém em especial. Um estorvo, apenas. Uma vizinha que cuidou da filha caçula do casal anfitrião e que hoje vive sozinha. Seus filhos cresceram e fizeram suas vidas longe dali. Mas ela é feliz por isso. Não tem mais ninguém para controlar os seus passos e agora ela pretende passar alguns meses no Canadá, uma região que ela visitou quando era jovem e para onde sempre quis voltar.

– Você descobriu tudo isso naquele pequeno esbarrão? – o rapaz reagiu, curioso.

– Na verdade, não. Foram vários encontros casuais em várias festas, acho que quase como aquele esbarrão. Ela sempre repete as mesmas histórias, principalmente a parte dos filhos que vivem longe daqui.

– E a viagem ao Canadá deve ser apenas uma fantasia.

– Na verdade, não. Ao que parece ela vai mesmo para uma cidadezinha perto de Ottawa. Pelo que me disseram, ela embarca em alguns dias.

– Puxa, então não é alguém tão fora de si.

– Não! Ela tem um jeito de ser doidinha, não é mesmo? As pessoas evitam ficar perto dela por isso. Vive repetindo as mesmas histórias. Será um alívio quando ela for embora.

Um homem, que ele não consegue lembrar exatamente de onde conhece, se aproxima e traz com ele uma taça de vinho. O convidado distraído se afasta, o homem lhe oferece a taça. O rapaz sorri e agradece.

– Esses encontros sempre acabam aborrecendo em algum momento – disse-lhe o homem, erguendo sua taça num brinde silencioso. – Acho que era esse que você estava bebendo, não é mesmo?

– Sim, esse mesmo – o rapaz respondeu, encantado com o poder de observação do homem. – E eu não estou aborrecido – completou.

– Ora, não se acanhe por se esconder um pouco. É sempre bom uma pausa na puxação de saco. Mesmo porque eu sou obrigado a dar uma bajulada básica. Adorei o seu último livro, a história do rapaz perseguido na Europa, aquela história realmente me empolgou.

– Que bom que gostou. Desculpe, mas de onde eu conheço?

– Eu sou pai do Lutz, seu colega de faculdade.

– Grande Lutzenberg! É isso! Eu me lembro do senhor, do jantar de formatura. E como está o Lutz? Faz tempo que eu não o vejo. Sabe que ele foi um grande incentivador da minha carreira. Acho que muito do que sou hoje eu devo a ele.

O rapaz não resiste tocar na medalha presa na corrente em seu pescoço, escondida sob a camisa.

– Ele está bem. Realizando seu sonho. Você sabe que no começo do ano ele viajou para Londres.

– É verdade. Na última vez que nos encontramos ele mencionou a viagem. Ele ganhou uma bolsa para um curso de extensão, não foi isso?

– Isso mesmo. Ele está fazendo uma pós-graduação na King’s College e está se saindo muito bem.

– Puxa, que bom. O senhor tem falado com ele?

– Não nos falamos muito, o curso é puxado, mas trocamos e.mails e mensagens sempe que possível.

– Sabe que nas últimas vezes em que nos vimos ele me ajudou muito no livro que eu estava escrevendo. Ele lia os originais para mim e deu vários palpites. Ele me ajudou bastante.

– Que bom, fico feliz em saber que vocês continuam tão próximos. Mas você sabe que agora vai ficar difícil ele continuar dando seus palpites.

– Por quê?

– Na semana passada recebi uma carta dele contando que conheceu um importante pesquisador e foi convidado para passar um período na Dinamarca e na Noruega. Ele vai participar de uma pesquisa de campo e estava muito empolgado com essa possibilidade.

– Olha, isso pode ser muito bom para a carreira dele.

– Não tenho a menor dúvida. O contato com ele será mais difícil. Ele deve ficar mais de um ano fora, longe de nós. Mas eu estou muito orgulhoso. Não é sempre que surge uma oportunidade como essa, não é mesmo?

– Oportunidades como essa são muito difíceis, é verdade – o escritor continua com a mão na medalha, por baixo da camisa.

A mulher parece procurar por alguém. Ela está aflita, vai até o anfitrião e despede-se, apressada. Ela está de saída.

– Estou muito feliz pelo Lutz, ele merece todo sucesso do mundo. Agora, o senhor me dá licença, eu preciso circular. Daqui a pouco tenho que sair para outro compromisso – disse o rapaz, erguendo a taça de vinho em direção ao homem, outra vez.

O jovem escritor cumprimenta algumas pessoas e segue em direção à poltrona onde a mulher estava. Não tem a menor intenção de se despedir de todos os convidados, mas não tem como fugir do anfitrião, que estava por ali desde que a mulher se despediu.
Ele tem pressa.

Precisa saber onde aquela mulher mora. Precisa conhecer todas as possibilidades. Precisa saber mais do quanto tudo pode ser conveniente. Precisa planejar muitas coisas e aquele é o momento de começar a trabalhar no próximo livro. Ele teve uma ótima ideia e não quer desperdiçá-la. E a mulher será de grande ajuda. Assim como Lutz o ajudou no livro anterior. (foto acima: www.unespar.edu.br)

 

ronaldoRONALDO TRENTINI
Jornalista e escritor. Com passagens pelo Jornal de Jundiaí, Jornal da Cidade, Jornal O Tempo e A Tribuna de Jundiaí. Foi secretário de Comunicação na Prefeitura de Jundiaí entre 2001 e 2004. Escritor independente, é autor da série Mistério & Sombra, disponível na Amazon.com.br.