Meu pai, meu primeiro FILÓSOFO

FILÓSOFO

Meu pai, meu primeiro filósofo é uma declaração de amor ao homem que amo, que deu a vida por mim e se arrebentou por inteiro para conquistar pequenos salários e, enfim, a aposentadoria emurchecida em um país de abismos sociais e econômicos. Este texto é – todo ele – para celebrar a vida, a história e o aniversário de Ivan, o Magnífico.

“Às vezes imagino um mapa-múndi aberto e você estendido transversalmente sobre ele. Para mim, então, é como se entrassem em considerações apenas as regiões que você não cobre ou que não estão ao seu alcance. De acordo com a imagem que tenho do seu tamanho, essas regiões não são muitas nem muito consoladoras (…)”.

Franz Kafka

Pai, eu e o senhor sabemos que em algum momento das nossas vidas nós nos tornamos dois adultos cuja distância fez-se regra, muito embora estejamos sempre tão próximos, duelando nossos silêncios na mesma cidadezinha, Jundiahy. Já ouvi muitas histórias de pais ausentes – e imagino que deva ser marcante a assombração de um pai oculto –, mas agora, enquanto escrevo, fico feliz por ter tido o senhor sempre tão chegado a mim, ao meu lado. Porém, tenho que assumir, desconfortável, que sou um filho quase anônimo.

Tornamo-nos uma incógnita um para o outro, e assim seguimos.

Você, eu bem sei, gosta tanto dos vivos, das pessoas radiantes e espontâneas, da constante alegria das conversas e dos atos singelos. O ir-e-vir definiu sua existência: migrante, retirante, autônomo caminhoneiro, sempre nas travessias, mas nunca à margem dos acontecimentos. Vejo o senhor como um Ulisses na boleia do caminhão Chevrolet, aquele meu Ulisses que sempre derrubará dois ou três Ciclopes por dia só pra conseguir pagar as contas e, no final da tarde, levar a mistura da janta e uns chocolates para filhos e filhas. A frase do para-choque do Chevrolet verde musgo & queixo duro eu jamais esqueço: Não sou dono do mundo, mas sou filho do dono.

Eu, muito diferente, me adequei aos diálogos com os mortos, uma espécie de silêncio crônico que impus a mim mesmo, justamente porque não sei conviver com as pessoas. Submerjo nos livros que compro – quero escrever sempre mais, sempre mais porque para mim a vida tem se tornado o jorro da tinta maculando os papéis. Confesso que ainda não sei o que quero quando rabisco a lápis os cantos de grandes obras que me tornam menos sábio a cada dia.

Há tempos que minha obsessão é a escrita, mas isso tem me apartado de tantas coisas, inclusive do nosso amor.

Esse nosso desencontro já tem história. O senhor se lembra de quando eu rabiscava frases nas paredes do quarto com a intenção de ferir o mundo? Um frágil adolescente rebelde com causas. Você acompanhou atento eu migrar do amor aos desenhos para a paixão pela filosofia. No meio disso tudo nós travamos guerras cotidianas: fé & razão são coisas que se discutem, assim como futebol e política. Ambos sabemos: somos duas vozes na mesma intensidade de trovão. Coisas de Pais & Filhos que discordam e nem sempre couberam sob o mesmo teto.

Afundo nos charcos do tempo, quase que volto a ser o menino franzino que fui. Tudo parece ser entoado pelo violão, que é o piano dos pobres. Os acordes marcavam o início dos finais de semana,eu demorei a aprender como se fazia o Fá+ e o Sí7. Pai, hoje nós temos tantas diferenças, mas o sagrado que ainda compartilhamos é o manual de um sábado perfeito: feijoada; depois goiabada de sobremesa; e um palito-de-dentes no canto da boca para ruminar lembranças. Para que seja completa a perfeição é preciso que haja um descanso no vai-e-vem da rede pendurada.

Relembro os nossos domingos. Um halo de sol atravessa o instante e dá de cara com uma mesa na casa suburbana da vila Hortolândia, repleta de risos: meu fascínio era contemplar o senhor cozinhando o cuscuz paraibano que, entre aleluias e améns, a família toda devorava com manteiga e com pitadas de sal. Eu aguardava o toque do seu violão e os primeiros pigarros da sua voz, essa voz que puxava carregando nos “erres” nordestinos– que são os melhores “erres” que esse país tem, claro. Seu repertório me mostrou Tim Maia, Fagner, Belchior, Luís Gonzaga e Raulzito (havia Roberto Carlos, que o senhor adora, mas ele nunca foi minha praia, sabemos bem disso). Esse seu violão tangido com vigor ainda me mostra a sabedoria de quem sempre lutou por momentos de paz.

Em nossas tardes o futebol relaxava os ânimos, esparramados no sofá. Ambos tricolores, o senhor, uma paraibano-carioca; eu, um paulistano-paulista. Depois que fui para a universidade reencontrei o seu amado grená fluminense, no Juventus da Mooca.

Foram esses ritosde bemóis e sustenidos, acalentados por lembranças de outras terras – a sua terrinha que o senhor ainda sonha em revisitar, divisa entre Pernambuco e Paraíba – que me moldaram. As anedotas, contos e musicais autorais me mostraram sempre que você, meu pai, é um artista, alguém repleto de camadas, cheio de talentos. O pai-artista, que é filho de Manuel Olímpio, sanfoneiro autodidata, deu ao filho o nome de um ídolo da música hoje pouco conhecido – nem sei se as pessoas sabem quem compôs aquele refrão nos pedindo para jogar “as mãos para os céus” e agradecer pela presença das pessoas que estão próximas, “na rua, na chuva, na fazenda ou numa casinha de sapê”.

Pai, o senhor se lembra do dia em que literalmente eu caí do cavalo? Foi um sábado, Dia dos Professores. Retornei à casa todo ensanguentado, pernas e braços esfolados pela queda. Ouso sentir o que o senhor sentiu, pois sei que, ainda antes do meu tombo de cavalo, quando eu tinha quatro anos de idade, lhe dei um susto: a mãe e o senhor, firmes, seguraram a barra diante da ausência de uma criança hospitalizada que faria uma cirurgia do coração. Foram dois sustos em tempos diferentes, mas no mesmo mês de outubro. Esses outubros sempre nos marcaram, não é mesmo? O meu sangue sempre foi rotina: menino de olhos fracos, vez ou outra esbarrava, tropeçava e topava com o mundo, daí o que mais se viam eram cortes, arranhões e machucados. Nem vamos falar do dia em que bati o nariz no banquinho de madeira e o senhor correu comigo para o posto médico.

Pai, eu imagino os conflitos e angústias que lhe visitaram.

Pai, para mim o seu ato de heroísmo foi viver a maior parte da vida com menos de 50 contos na carteira. Essa carência material é hereditária? Não importa, pois mesmo assim o senhor soube me transpassar com seus ensinamentos, sua fala suave sempre contrastou com seus bíceps de atleta do dia-a-dia, da vida real. Seu jeito aparentemente severo desmanchava-se numa piada ou num conto de terror vindo diretamente do nem um pouco árido folclore nordestino.

No rigor das suas barbas eu edifiquei meus afetos, meu pai. Nas poucas vezes em que vi seu choro eu edifiquei a minha fé nos seres humanos, sim, uma fé que hoje é sem Deus, todavia, uma fé repleta de respeito e empatia. Na sua bondade infinita em dividir nossos almoços com eventuais pedintes eu vi um Jesus sem firulas e exigências de dízimos. E foi sob a sua luz e sombra que eu pude construir o que há de melhor em mim.

De pai para filho, de filho para pai. Eu sei e o senhor sabe que somos frutos da mesma tribulação, que, de certo modo, estamos unidos pelas fronteiras de nossas almas.

A frase que abre esse texto é de Kafka, um gênio tcheco de ascendência judaica, mas de prosa alemã, que tanto admiro. Nessa passagem ele jorra ressentimentos com a figura paterna que o impedia de ser aquilo que ele queria: um escritor. Mas sou obrigado a revalidar esse fragmento, pois o senhor, mesmo em meio às adversidades de uma vida operária de pouca grana, me fez ser o que sou e nunca impôs barreiras ao meu crescimento como ser humano.

A primeira pessoa a quem devo o fato de ter estudado e me aplicado nesse mundo imenso que é a filosofia, evidentemente, foi o senhor. Eduquei-me muito nos bancos das universidades, mas meu primeiro aprendizado foi que: antes do diploma na gaveta, eu preciso recobrir-me de um verdadeiro amor pelo que faço. Não é fácil ser o professor que adora provocar as pessoas, mas eu sei que não foi nem um pouco fácil ter percorrido por mais de 30 anos o cotidiano das estradas de São Paulo. Lembro-me, ainda em tempo, daquele grosso conjunto de mapas das ruas que o senhor tinha no caminhão, lembro-me que o senhor nunca o consultava, pois já o tinha em mente. Coisas assim me fazem entender que é por isso que o senhor sempre foi o meu primeiro livro, a minha primeira obra lida, relida e admirada.

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Se hoje sou escritor – e bato forte no peito ao dizer isso – é porque a minha primeira literatura, os meus romances de formação, vieram das experiências que tive e ainda tenho com o senhor. Todas as nossas contradições e brigas não fizeram de você um empecilho para os meus rumos – não, o senhor não é como o agressivo pai do Kafka, que se debruçava ante as oportunidades do filho e o obstruía –, mas, muito pelo contrário, o senhor me levou em suas mãos (firmes para carregar e descarregar carrocerias; frágeis como um diapasão) para os caminhos que hoje sou. Pai, com amor e carinho, obrigado por ser meu maior filósofo.(Foto: araripenewsonline)

HILDON VITAL DE MELO

‘Jundialmente’ conhecido. Escritor e pesquisador à deriva, mas professor de filosofia, por motivos de sobrevivência.
E-mail: vitaldemelo@yahoo.com.br – Instagram: @camaleao_albino

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