O país do SORRISO obrigatório

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Era uma vez um país onde o “Sim” era moeda forte. Um lugar que havia abolido o “Não” por decreto invisível, mas eficaz. Dizia-se que tudo era possível, bastava querer. E quem duvidasse disso era, imediatamente, convocado a se olhar no espelho e se culpar. Se não deu certo, a culpa foi sua. Você não quis o bastante. Você não acreditou direito. Você não sorriu o suficiente.

Naquele país, as pessoas andavam em fila indiana para aprender a ser felizes. E por aprender entenda-se: decorar frases motivacionais, pagar cursos que ensinavam a “viver com propósito” e ouvir palestrantes que, aos gritos, diziam que você era um leão — ainda que vivesse acorrentado em um escritório sem janelas, sem pausas e sem tempo para pensar. O grito do coach substituiu o silêncio necessário ao autoconhecimento. E, ao final da palestra, você ganhava um certificado e uma culpa. Afinal, agora você sabia o caminho. Se não fosse feliz, era incompetência sua.

A felicidade virou tarefa. E o entusiasmo, um imperativo moral. “Seja grato!” — diziam cartazes pendurados em ambientes corporativos que deixavam seus funcionários doentes. O RH promovia campanhas do “abraço do bem” enquanto distribuía demissões com um e-mail frio e impessoal. Havia café com bolo na sexta-feira, mas também reuniões às sete da manhã na segunda. Havia brindes de Natal, mas também metas inalcançáveis. E quem adoecia era rotulado de “fraco”, “frágil” ou “negativo”. A positividade era compulsória. E os ansiolíticos, vendidos em combo com agendas e cadernos de produtividade.

No canto da praça, outro fenômeno ganhava força: o milagre instantâneo. “Venha para Jesus e seus problemas acabarão”, dizia o pastor numa esquina onde os ônibus mal paravam. O evangelismo virou drive-thru de cura. Filas se formavam para promessas prontas: bênção, sucesso, casamento, prosperidade, paz. Não havia espaço para a dúvida, para o conflito, para a dor. A oração virou moeda de troca, e a espiritualidade, uma prestação de serviços. Deus era o CEO de uma empresa de milagres. E quem não recebia, provavelmente tinha falhado em alguma parte do processo: pouco dízimo, pouca fé, pouco joelho no chão.

A política do Sim se infiltrou também nas relações: era preciso estar sempre disponível, aberto, receptivo, pronto para ouvir, para aceitar, para perdoar — mas só os outros. Os conflitos viraram sinais de atraso emocional. A tristeza, um erro de percurso. A crítica, uma grosseria inaceitável. E assim, todo mundo dizia sim. Sim ao chefe, sim à palestra, sim ao culto, sim ao convite, sim à demanda. Um sim cansado, doído, mas disfarçado de entusiasmo.

A grande ironia é que, em meio a tanta luz, as sombras só aumentavam naquele país. Por trás das selfies sorridentes, havia noites insones. Por trás das metas batidas, corações batendo no limite. Por trás das frases motivacionais, pessoas exaustas, chorando no banheiro da firma ou no banco traseiro do carro, antes de chegar em casa. E ainda assim, no dia seguinte, lá estavam elas: de camisa passada, maquiagem firme, e mais uma dose de “vai dar certo” engolida com o café.

Vivíamos uma era onde dizer a verdade era um ato revolucionário. Dizer “não aguento”, “não quero”, “não acredito” virou rebeldia. Porque o sistema exigia aceitação constante. O segredo era manter a aparência, seguir sorrindo, sorrir até com os olhos, sorrir até do cansaço. Havia um mercado inteiro dedicado a isso. Cursos de expressão facial, treinamentos de atendimento ao cliente, mentorias para ensinar a “vender sua imagem”. A felicidade virou produto de prateleira. E a dor, contrabando escondido na bolsa.

E assim, num país onde todos sorriam, ninguém era feliz. As belas mentiras dominavam. Mentiras com fundo musical, trilha de superação e fotografia profissional. Mentiras bem intencionadas, que diziam “o universo conspira a seu favor” enquanto o aluguel aumentava e o salário não. Mentiras que falavam de amor enquanto as relações se sustentavam por medo de solidão. Mentiras sobre um amanhã melhor, desde que você seguisse produzindo, consumindo e silenciando.

A verdade era barulhenta, mas não fazia sucesso. Porque ela dizia que a vida dói, que nem tudo se resolve com fé, que nem toda ferida se cura com sorriso, que nem todo “sim” é coragem — às vezes, é covardia de dizer “não”.

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Mas havia quem começasse a perceber. Pequenos surtos de lucidez surgiam em rodas de conversa sinceras, em terapias discretas, em cadernos com rabiscos de desabafo. Pessoas começavam a se rebelar. Não com gritos ou faixas, mas com recusas. Recusavam convites. Recusavam o excesso. Recusavam o papel de protagonista de uma farsa. E, lentamente, um novo verbo ganhava força: aceitar — não o que os outros exigiam, mas o que o corpo e a alma diziam.

Aceitar não sorrir. Aceitar não querer. Aceitar não crer. Aceitar que viver exige mais do que positividade: exige verdade. E quem sabe, no silêncio desses gestos pequenos, renasça um país onde o “Sim” e o “Não” possam coexistir. Onde não haja culpa por ser humano. Onde se possa, finalmente, parar de sorrir — e começar a viver.(Foto: filme ‘Sorria 2’)

AFONSO ANTÔNIO MACHADO 

É docente e coordenador do LEPESPE, Laboratório de Estudos e Pesquisas em Psicologia do Esporte, da UNESP. Leciona, ainda, na Faculdade de Psicologia UNIANCHIETA. Mestre e Doutor pela UNICAMP, livre docente em Psicologia do Esporte, pela UNESP, graduado em Psicologia, editor chefe do Brazilian Journal of Sport Psychology.

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