A quinta-feira acabou como o melhor dia da semana, só porque foi o primeiro dia de sol depois de vários dias estranhamente chuvosos. Em semanas chuvosas, as pessoas tendem a ser igualmente chuvosas. A experiência nos ensina isso. E foi nessa quinta-feira de sol que eu decidi sair para passear com o meu cachorro. Não é um cachorro pequeno. E dizer que eu costumo levar meu cachorro para passear não passa de um equívoco constrangedor. E, justo nesta quinta-feira, quando o cachorro enorme estava ansioso e agitado, depois de três dias de chuvas e confinamento, algumas pessoas inconvenientes decidem fazer a mesma coisa.
Conviver com outras pessoas é, sem dúvida, um ótimo exercício de paciência. Em cada momento somos colocados à prova e todos os encontros são situações típicas para se exercitar suas relações sociais. Portanto, caminhar pela rua, com um cachorro ou não, é um curioso teste de relacionamento e trato com outras pessoas. Vivemos em sociedade, então é assim que as coisas funcionam.
O primeiro encontro aconteceu perto de uma ponte. A única ponte que temos para atravessar, caso nosso destino esteja do outro lado do rio. É para isso que as pontes servem.Vindo de uma rua perpendicular, atravessa a rua um homem empurrando um carrinho com um bebê. Não um carrinho convencional, mas um que simula um carro de verdade (uma caminhonete para ser exato, outro exemplo de uso da paciência no convívio social), com uma longa haste para ser empurrado.
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O homem avança para a ponte e eu reduzo a velocidade, retendo meu cachorro, para dar prioridade a ele e ao bebê. Aos poucos o homem vai reduzindo o passo. Até que decide parar de uma vez. Bem ali, sobre a ponte, ocupando toda a calçada pela qual eu (e o meu pequeno e impaciente amiguinho) também deveríamos passar. E o homem não parou no meio da ponte. Ele parou na ponta, de modo que bloqueou o caminho não apenas da própria ponte, mas também da calçada da outra rua.
Esperei por alguns momentos para que o homem decidisse o que faria da vida. Nada. Ele estancou ali e ali mesmo tinha decidido, talvez, criar raízes. Eu não sei. A saída foi contornar. Atravessar a rua e cruzar a ponte pela outra calçada. Depois invadir a outra rua e seguir com o cachorro pelo asfalto até poder voltar para a calçada.
Vencido o primeiro obstáculo, segui meu caminho. Um pouco adiante eu deveria atravessar a rua e entrar por uma viela que me permite cruzar o quarteirão. É a passagem mais rápida entre a minha rua e uma avenida larga e mais adequada para passear com o cachorro.
Para minha surpresa, lá estava o segundo obstáculo. Uma senhora usando roupa justa, num corpo não tão justo assim, esperava por alguma coisa para iniciar o que me pareceu ser uma agradável manhã de exercícios. Uma caminhada talvez. E ela esperava bem ali, bloqueando o acesso à viela.
Tornei a parar por alguns instantes, na vaga esperança de que minha colega de passeios em manhãs ensolaradas tivesse um rompante de bom senso. Nada. Ela decidiu que iria bloquear o acesso à viela e não arredou pé. Mais uma vez, a saída foi contornar. Atravessar a rua alguns metros adiante e passar para a viela bem rente a parede, segurando a correia do cachorro com força, para que ele não ousasse cheirar a base daquele estranho poste.
Naquele momento o cão já estava ainda mais agitado. Atravessei a viela aos trancos, entre um puxão e outro. E não demorou muito eu pude me encantar com uma nova surpresa, na outra ponta da viela. Dessa vez, uma combinação. Uma caminhonete enorme, preta e bem desagradável, estacionada em local proibido, travando minha travessia logo na saída da viela e, na outra ponta, outra senhora também com roupa justa, esperando por algo que não consigo imaginar o que seja.
Uma ideia me passou pela cabeça. Talvez aquelas duas senhoras tivessem combinado se encontrar para uma caminhada juntas. E a falta de experiência em ajustar um encontro tenha feito com que elas ficassem cada uma esperando pela outra na ponta errada da viela. Quem sabe?
Sigo pela avenida tranquilamente, crente que os obstáculos, enfim, acabaram. Alguns quarteirões depois chega o trecho em que preciso cruzar outra viela para retornar à minha rua e poder voltar para casa. E o que vejo bem ali, diante da outra viela, parado como se esperasse a banda passar?
O homem decidiu fazer quase a mesma coisa que eu. Só que, ao invés de passear com o cachorro, ele resolveu ficar parado. Bem na frente da viela. E, no seu caso, era um cachorrinho, desses bem fofinhos, peludinhos e barulhentos. Acho que eu já comentei que o meu cachorro é grande. Ele até se comporta bem diante de homens distraídos, carrinhos de bebês e senhoras esperando Godot para fazer sua caminhada. Agora, além de ansioso e agitado, ele não lida muito bem com outros cães. Ainda mais os fofos e peludinhos.
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Aí não teve jeito. Parei mais uma vez, meu cão quase tendo um ataque de nervos, aguardando que o indeciso notasse a minha presença. Ele notou e ainda assim continuou bloqueando o caminho. Tive que fazer um sinal, indicando minha intenção de entrar na viela, para que ele se mexesse.
Relendo o texto para a revisão, tive a sensação de que eu sou muito chato com esses detalhes. Mas a sensação não durou muito. Talvez eu seja mesmo um chato, mas eu entendo que não estou sozinho no mundo. Portanto, qualquer coisa que eu faça tende a afetar direta ou indiretamente outras pessoas que estão à minha volta.
Quando se está na rua caminhando ou, o que é infinitamente pior, quando se está dirigindo, não dá para ignorar outras pessoas. Parar, manobrar ou apenas virar para um lado ou outro, sem prestar atenção em quem está à sua volta. Reconhecer que você faz parte de um grupo é essencial para quem vive em sociedade. Ainda mais quando a pessoa que está a seu lado vem acompanhada de um cachorro enorme e impaciente!(foto acima: fofuxo.com.br)
RONALDO TRENTINI
Jornalista e escritor. Com passagens pelo Jornal de Jundiaí, Jornal da Cidade, Jornal O Tempo e A Tribuna de Jundiaí. Foi secretário de Comunicação na Prefeitura de Jundiaí. Escritor independente, é autor da série Mistério & Sombra, disponível na Amazon.com.br, entre outros livros.