Discorre a Sociologia que, atualmente, vivemos numa sistemática de vida chamada de “líquida”, contrária ao antigo modelo considerado sólido, onde a rotina de vida das pessoas era lastreada no fato concreto, num sistema duradouro de realizações, seja qual fosse a área de atuação e interação nas relações humanas. Adequando essas considerações no tempo, percebe-se que tais diferenças de comportamento ocorrem entre meados do Século XX, a partir de novos conceitos de direitos e liberdades definidos a partir do pós-guerra, firmando-se essas mudanças comportamentais, com mais intensidade, no início do Século XXI. Algumas pesquisas atribuem essa situação de concretização de mudanças de comportamentos, ao avanço das ciências tecnológicas, principalmente aquelas voltadas à comunicação de massas. A fluidez da informação em tempo real pode não possibilitar a sua necessária digestão para melhor compreensão e discernimento para produzir opinião, gerando os absurdos, a incompreensão, a intolerância, entre outras mazelas próprias do ser humano. O fato é que as pessoas e o mundo mudam, mas nem por isso deve-se perder a esperança de melhores tempos, como relata Roberto Freire, na sua obra “Pedagogia da Esperança”, sendo necessário trabalhar a possibilidade, ainda que remota, de que o quadro opressor-oprimido seja combatido com ferramentas adequadas e eficazes, como no caso da educação individual e de massas, ou mesmo através da imposição regulamentada pela lei. Infelizmente, ainda hoje, como no passado, o racismo representa a conservadora intolerância ao diferente, principalmente em relação aos mais fracos. Se o mundo é regido somente por líderes fortes, conforme entendimento de Nietzsche, esses devem ter um olhar diferenciado para os diferentes menos abastados, até porque todos são seres humanos sujeitos de direitos e deveres na vida em sociedade, mandamento intrínseco do texto constitucional.

A partir das políticas públicas estabelecidas na Constituição Federal de 1988, que atualmente são definidas como sendo ações, iniciativas e programas adotados pelo Estado no cumprimento de suas atribuições legais, as quais não se confundem com as chamadas ações afirmativas, estas representadas por programas e medidas especiais adotadas pelo Estado e pela iniciativa privada para a correção das desigualdades raciais e para a promoção da igualdade de oportunidades, surgiram tímidas manifestações no sentido de regulamentar situações de indiferença em relação a alguns grupos sociais no país, além de alguns temas específicos, como criança e adolescentes, meio ambiente, violência doméstica, entre outras.

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Com o tempo, as medidas adotadas pelo Estado foram avançando e atualmente os principais problemas públicos levantados e até então não encarados e discutidos, passaram a ter tratamento mais direcionado, como forma de reconhecimento da cidadania, uma vez que representam direitos garantidos pela Carta Magna. Apesar disso, por influencias sociais, econômicas e políticas, o quadro geral da vida em sociedade ainda insiste em alimentar e manter as o preconceito, as discriminações, como no caso do racismo, através de manifestações espúrias e criminosas, externadas das mais variadas formas. Essa prática insidiosa é tão devastadora nos relacionamentos humanos que a Organização das Nações Unidas – ONU, estabeleceu em 21 de novembro de 1969, o dia 21 de março como sendo o Dia Internacional de Luta pela Eliminação da Discriminação Racial no mundo, data comemorada em memória de cidadãos Sul Africanos mortos em protestos, em 1960, na luta por liberdade de locomoção, na Província de Gauteng, naquele país. Lembrando que a Declaração Universal dos Direitos do Homem, foi adotada pela ONU em 1948, a qual já previa condenação de qualquer tipo de discriminação em razão da cor da pele, de gênero, nacionalidade, etnia, idioma, religião ou qualquer outra condição relacionada a vida humana com dignidade. A Lei nº 12.288 de 20 de julho de 2010, que institui o Estatuto da Igualdade Racial, define discriminação racial ou étnico-racial, como sendo toda forma de distinção (diferenciação), exclusão (eliminação), restrição (fragmentação) ou preferência (benefício) baseada em raça, cor, descendência ou origem nacional (regiões do país) ou étnica (valores de formação) que tenha por objeto anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício, em igualdade de condições, de direitos humanos (geral) e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural ou em qualquer outro campo da vida pública (interesse público) ou privada (invasão de privacidade). O detalhamento da lei na descrição das condutas não deveria deixar espaço para questionamentos ou duvidas na efetiva aplicação da norma, porém isso ainda precisa ser considerado e aprimorado pelo poder público. O racismo continua imperando em todas as áreas do relacionamento humano.

Uma das prováveis causas que tenta explicar a manutenção de comportamentos racistas, em todas as áreas, seria a utilização das redes sociais como ferramenta para disseminar ódio e intolerância àqueles grupos considerados “diferentes” dos demais “iguais”. O chamado fenômeno de agir na condição de integrante da “tribo”, não permitiria ao opressor raciocinar com independência crítica e se manifestar de forma mais clara segundo conceitos de boa convivência social e empatia. Também, o fato de agir em descompasso com demais do grupo, traria insegurança àquele que pratica o racismo, que temeria de ser expulso da “tribo” a que pertence. Isso ou aquilo, o fato de ofender alguém por razões, critérios e valores individuais, valendo-se ou não de anonimato, configura conduta criminosa, segundo nossa legislação penal brasileira, ainda que praticada através da internet. A Lei nº 12.735 de 30 de novembro de 2012, representa importante ferramenta para investigação de crimes praticados mediante uso de sistema eletrônico, digital ou similares.

A primeira manifestação legal no sentido de combater o preconceito e a discriminação racial, deu-se através da Lei nº 1.390 de 3 de julho de 1951, que incluía como contravenção penal a prática de atos resultantes de preconceitos de raça ou de cor, prevendo pena de prisão simples, que iam de um mínimo de três meses a um máximo de um ano de prisão, além de multa em cruzeiros, à época. Ainda que naqueles tempos não se falava em crimes de menor potencial ofensivo, nem se cogitava algumas regalias quando da aplicação da norma penal, ainda assim, no caso do racismo, nenhuma condenação foi promovida até três décadas após sua promulgação. Havia a previsão legal contra tal conduta contravencional, porém não se aplicava na prática, ainda que os casos de ocorrências envolvendo racismo acontecessem país afora. Em 1989, um ano após a promulgação da atual CF, é promulgada a Lei nº 7.716/89, definindo os crimes resultantes de preconceitos de raça ou de cor. Dessa forma, tais condutas deixam de ser consideradas meras contravenções penais para então serem consideradas práticas criminosas mais graves, portanto, com punição mais rígida por parte da lei, que vai sendo alterada na medida que são reconhecidas as necessidades de incluir novas condutas, conforme o racismo, infelizmente, se aprimora ao longo dos tempos. As penas passam a ser de reclusão de até cinco anos, sendo ainda considerado constitucionalmente, um crime inafiançável e imprescritível, ou seja, não cabe pagamento de fiança para livrar-se solto o acusado e o crime permanece no tempo com possibilidade de responsabilizar o autor a qualquer momento. Ainda assim, o crime de racismo não é considerado crime hediondo, nem por equiparação. Tramita no Congresso Nacional, alguns projetos de lei que alteram a atual lei sobre racismo para inserir novas condutas, como é o caso do PLS nº 238 de 2017, para também incriminar condutas resultantes de discriminação em razão de pertencimento ou procedência de determinada região geográfica, unidade federativa, comunidade tradicional ou identidade cultural.

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Enquanto o crime de racismo é tratado em lei especial, consistindo na conduta de discriminar uma coletividade indeterminada de indivíduos, também existe outra forma de criminalização no Código Penal, que guarda certa semelhança, chamada de Injuria Racial que é um tipo de Injuria Qualificada, a qual consiste em ofender a honra subjetiva de alguma pessoa, atingindo valores relacionados à raça, etnia, religião ou origem do ofendido. Nesse caso, a punição prevista é de um a três anos de reclusão. O crime prevê que cabe ao ofendido manifestar-se no prazo e na forma da lei para que o seu ofensor seja criminalmente processado, uma vez tratar-se de crime cuja ação penal é privada, ficando condicionada à representação da vítima. Vale lembrar que a injuria racial ou qualificada, prescreve em oito anos, ou seja, após a ofensa sofrida pela vítima, esta tem seis meses para representar contra o seu ofensor e o processo deve ser concluído em oito anos, sob pena de livrar-se impune o autor da ofensa racial.Ainda assim, segundo dados do Atlas da Violência 2017, ainda em pleno Século XXI, os negros estão entre as principais vítimas da violência, juntamente com pessoas de baixa escolaridade, estando o racismo incrustrado em grande parte dessas ocorrências registradas, país afora.

Ainda que efêmera a possibilidade de solução conclusiva para evitar a prática do crime de racismo, não se pode perder a esperança de que essa situação se resolva, principalmente através da conscientização de cada um, já que estamos todos num mesmo barco, ainda que à deriva. (foto principal: smactf.sch.id/news)


ferraz-400x267JOSÉ ROBERTO FERRAZ

Ex-comandante da Guarda Municipal de Jundiaí; delegado aposentado da Polícia Civil; especialista e professor de Direito Ambiental.