Quem acompanha as sessões da Câmara Municipal de Jundiaí sabe que, mais cedo ou mais tarde, um vereador pedirá a palavra e fará citações bíblicas. Deus nunca esteve tão presente nos trabalhos legislativos, inclusive na forma de projetos e moções. Este é um fenômeno que não ocorre somente em Jundiaí. Existem centenas de estudos e reportagens que tentam explicar a necessidade de incluir o Todo Poderoso no discurso político. O problema é que os parlamentares de fé exacerbada esquecem que a população não é homogênea. Nem todos acreditam em Deus. Alguns acreditam, mas não tem uma religião. Existem também os praticantes de religiões que não seguem a tradição judaico-cristã. Em meio a tantas questões, é inevitável não fazer algumas perguntas: uma Casa de Leis é lugar para pregação e citações de versículos? Religião deve ser assunto recorrente nas sessões? A Câmara de Jundiaí – cujo a primeira sessão do ano será no próximo dia 6 – deve gastar tempo e dinheiro para votar propostas de cunho religioso?
Primeiro é preciso entender qual é a finalidade de uma Câmara, o órgão legislativo municipal. Nela são formuladas leis que posteriormente serão aprovadas ou vetadas. O Legislativo fiscaliza as receitas e despesas do Executivo. Os vereadores representam os interesses da população junto ao poder público e legislam, ou seja, trabalham com as leis que regem as ações da Prefeitura. Podem criar, extinguir e fazer emendas de interesse público. Então, seria correto imaginar que determinado parlamentar se utiliza do discurso religioso porque é o desejo do seu eleitorado. Só que o Brasil é um estado laico, separado da igreja, que não adota uma religião oficial, não interfere em assuntos religiosos(com exceção daqueles relacionados a questões jurídicas) e é independente de qualquer crença. O estado laico assegura o direito do cidadão de praticar sua fé. E quem não tem nenhuma religião também é protegido pela laicidade.
Os exemplos das pregações durante as sessões ordinárias da Câmara de Jundiaí são fáceis de serem comprovados. Quem tiver paciência para assistir aos trabalhos, do começo ao fim, verá várias menções às passagens bíblicas durante as votações. Só para ilustrar: na sessão do último dia 5, ao defender a peça orçamentária do próximo ano, o vereador Roberto Conde travou um embate com pessoas que assistiam os trabalhos. “Senhor presidente, acho que é preciso fazer uma sessão de descarrego aqui”, disse. Depois de apontar vários avanços na cidade, Conde afirmou: “é claro que existe uma turma do quanto pior, melhor. O nosso presidente da República só viaja. Não tem política para os municípios. E sobre a reforma tributária, os ‘militontos’ que ficam aí gritando, não sabem que vai prejudicar as cidades. O ídolo de vocês, o deus de vocês, o bezerro de ouro de vocês, está prejudicando o Brasil”. O bezerro de ouro citado está numa passagem de Êxodo, quando Moises desce do Monte Sinai e encontra o povo adorando uma estátua. Era o bezerro de ouro que o povo de Israel pediu para Arão fazer.
Ao ler as pautas das sessões, vez por outra aparecerão projetos ou moções com viés religioso. Em fevereiro do ano passado o vereador Paulo Sérgio Martins apresentou o projeto 13.550 que proibiria a nomeação de condenados por crime de homofobia a cargos de comissão. O vereador Douglas Medeiros foi às redes sociais e mostrando uma bíblia colocou-se contra a proposta. O jornalista e diácono Pedro Fávaro Júnior teve o artigo “Incongruências Mortíferas” publicado no Jundiaí Agora. Foi uma resposta ao vereador.

“Há fatos que me deixam perplexo, aturdido e cansado e sobre os quais minha consciência não permite calar, como a ignorância e as incongruências de cristãos, especialmente os protagonizados por meus irmãos e irmãs católicos, praticantes, quando fazem a apologia da intolerância, da violência e da morte ao diferente – infringindo a regra de ouro de Jesus: amar ao próximo como a si mesmo e se quiser ser meu discípulo, como eu vos amei. Mandamento esmiuçado nas atitudes propostas pelo Projeto do Homem Novo, nos capítulos 5, 6 e 7 de Mateus – o Sermão da Montanha. Atos que passam por cima, também, do Código Penal, em seus artigos 140 e 286 sobre injúria e incitação à violência e podem resultar em penas severas de prisão. O vereador Douglas Medeiros, revestindo-se de pregador numa tribuna laica, levantou em tom colérico seis versículos do primeiro capítulo da Carta aos Romanos (Rm 1,26-32), escrita por Paulo Apóstolo, para atacar projeto de outro Paulo, seu colega de Câmara, Paulo Sérgio Martins, proibindo a nomeação, para cargos em comissão, de pessoas condenadas por crimes relacionados à homofobia. Medeiros(foto acima), de Bíblia em riste, afirmou que logo não se poderá fazer menção ao que ela diz, sem ser acusado de homofobia, caso o projeto do colega fosse aprovado, numa associação completamente exagerada e descabida, própria de fundamentalistas”, escreveu o diácono. O projeto foi rejeitado pelo plenário.
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O vereador Madson Henrique teve votado no dia 21 de março deste ano, o projeto 13.691/2022, que proíbe o vilipêndio(insulto) de dogmas e crenças da fé cristã bem como seus símbolos. O prefeito Luiz Fernando Machado vetou parcialmente a proposta. De acordo com o texto de Madson, sátiras, insultos, ridicularização e menosprezo da fé cristã em desfiles de Carnaval, espetáculos, passeatas e marchas de organizações, associações, agremiações civis, partidos políticos e fundações. O texto prevê multa de 5 a 100 mil Unidades Fiscais(UFMs). Em caso de descumprimento da lei em evento subsidiado com recursos públicos, a multa terá o valor mínimo de 20 mil UFMs. Cada unidade fiscal tem o valor de R$ 200,76. Além disto, o responsável pelo desrespeito não poderá receber recursos do município por cinco anos.

Se este projeto estivesse em vigência em setembro de 2017, a peça ‘O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu’(foto acima) não teria sido encenada no Sesc Jundiaí. O espetáculo trazia Jesus como uma mulher transgênero. A Justiça local concedeu liminar alegando que obra desrespeitava religião e figura venerada no mundo. O caso foi parar no Tribunal de Justiça de São Paulo. Em fevereiro do ano seguinte, os desembargadores derrubaram a liminar concedida pela Justiça de Jundiaí.
Já em setembro, o mesmo vereador apresentou o projeto que proíbe invasão, ocupação ou perturbação de cultos religiosos. Os infratores poderão ser multados em 10 Unidades Fiscais(UFMs). Madson justificou a proposta citando o caso de um grupo, no qual estava o vereador Renato Freitas, do PT de Curitiba, que invadiu uma igreja. Ele foi cassado e retornou ao cargo já que nenhum crime foi cometido. O parlamentar de Jundiaí cita vídeos que “mostravam o ato criminoso dos manifestantes e provocaram críticas, endossadas pela Arquidiocese de Curitiba, que falou em atos agressivos e danos ao patrimônio, além de palavras de ódio e intolerância religiosa”. O que ocorreu na igreja, conforme os vídeos, foi uma manifestação contra o ódio racial. Tanto que a Arquidiocese de Curitiba pediu à Câmara daquela cidade para não punir Renato Freitas. Este projeto, que não cita a confusão causada por bolsonaristas na Basílica de Aparecida em outubro do ano passado – ainda não foi votado.
Em agosto último, o vereador Val Freitas apresentou moção de apoio ao projeto do deputado federal Helio Lopes para tipificar o crime de Cristofobia. Ele argumenta: “considerando o aumento de discursos e de ações contra aqueles que professam a fé cristã; considerando que no ano passado um vereador invadiu uma igreja, desrespeitando o local de culto e os símbolos religiosos; considerando que a liberdade de crença e a livre manifestação da fé são valores pétreos gravados em nossa Constituição Federal e que a sua violação é um grave ataque à dignidade humana”. A moção foi aprovada.
Na sessão do dia 14 de novembro último, Roberto Conde apresentou o projeto de resolução 865 para criar o diploma Rei Pelé e, através dele, a Câmara poderá homenagear atletas e paratletas da cidade. Conde começou elogiando Pelé dentro dos campos. O vereador Rogério Ricardo(Podemos), pediu a palavra e lembrou que o maior jogador de todos os tempos não aceitou uma filha que teve fora do casamento. “Como atleta foi o melhor. Mas como ser humano, rejeitou a filha que estava morrendo de câncer. Vou votar como homenagem ao atleta. Como pessoa, ele deixou a desejar para mim”, afirmou Rogério. Neste ponto, Conde retomou a palavra e esculachou com o próprio homenageado. “Concordo com o senhor. Para o atleta, nota 10. Para o homem, nota zero. A gente tem que separar o atleta do homem. O atleta foi excepcional. Agora, como homem, ele errou. Mas, o senhor Jesus disse: aquele que não tem pecado que atire a primeira pedra”, afirmou Conde. Ele esqueceu que Cristo também disse: “não julgue para não ser julgado. Porque com o juízo que julgou, você será julgado. E com a medida com que você mede, você será medido”. O projeto foi aprovado.
Resta uma pergunta aos vereadores que usam e abusam do discurso religioso: Será que Deus aprova isto?(Publicada originalmente em dezembro de 2023 – Foto principal: www.coisasdecajazeiras.com.br)
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