LUTO: Perder é ressignificar

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O luto é uma experiência universal, presente na vida de todos os seres humanos, mas frequentemente abordada de maneira tradicional e linear, como se fosse um processo com fases rígidas que seguem uma ordem previsível. No entanto, quando olhamos mais de perto, percebemos que o luto, em sua essência, é muito mais complexo e multifacetado, assumindo formas que transcendem as classificações convencionais.

Para refletir sobre o luto de forma incomum, podemos analisá-lo por diferentes ângulos, considerando aspectos que vão além das tradicionais “fases” de negação, raiva, barganha, depressão e aceitação. A proposta aqui é explorar como o luto pode ser um catalisador para crescimento pessoal, como ele assume dimensões coletivas em certos contextos, e até como a era digital e as culturas moldam e reconfiguram a vivência dessa dor.

O luto, embora doloroso, pode ser uma poderosa oportunidade para o crescimento pessoal e para a transformação. Esse aspecto menos discutido da perda sugere que, ao contrário do que se imagina, o luto não se limita a ser uma fase de sofrimento passivo.

Para muitas pessoas, a perda pode despertar um profundo processo de autoconhecimento, levando a uma reavaliação dos valores e dos objetivos de vida. A teoria do “crescimento pós-traumático” sugere que, após enfrentar uma grande perda, alguns indivíduos emergem da experiência com uma nova perspectiva sobre si mesmos e o mundo.

Dessa forma, o luto pode funcionar como um espelho que reflete as fragilidades e os desafios da existência, mas também as forças desconhecidas que podem ser mobilizadas em momentos de adversidade. Em vez de apenas aprisionar a pessoa em sua dor, o luto pode libertar energias criativas, levando-a a buscar sentido em novos caminhos, redefinir propósitos e construir uma vida mais alinhada com seus verdadeiros desejos.

Embora isso não diminua a dor da perda, oferece uma perspectiva mais ampla, onde a experiência de luto se entrelaça com a noção de renascimento. Como o filósofo Nietzsche sugere em sua célebre frase “aquilo que não nos mata nos fortalece”, o luto pode se transformar em um processo de reconstrução pessoal, em que, após a queda, o indivíduo se ergue mais consciente de si e do mundo ao seu redor.

Por mais que o luto seja vivenciado individualmente, ele também pode assumir dimensões coletivas, especialmente em contextos de tragédias públicas ou crises globais. Quando uma sociedade é marcada por uma perda significativa, como em casos de desastres naturais, atentados ou pandemias, o luto transcende o espaço íntimo e se espalha por toda a comunidade.

Essa forma de luto coletivo, muitas vezes subestimada, revela como a experiência da perda é compartilhada por todos, criando um senso de pertencimento e solidariedade. Nessas situações, os rituais comunitários e os apoios coletivos desempenham um papel crucial na superação da dor.

A vivência do luto dentro de uma comunidade permite que a dor seja acolhida de maneira mais aberta, oferecendo um espaço para que os indivíduos enlutados possam expressar suas emoções sem medo de julgamento. O apoio coletivo ajuda a transformar o sofrimento em uma experiência de conexão, onde a perda de uma vida ou de um ideal é sentida por todos, e não apenas por aqueles diretamente afetados.

Rituais como funerais, missas de sétimo dia ou manifestações públicas em homenagem aos mortos reforçam o sentimento de que o luto é uma experiência que atravessa o tecido social, unindo os indivíduos em uma rede de dor e consolo.

Essa dimensão coletiva, portanto, amplia nossa compreensão do luto, sugerindo que, em vez de ser uma vivência isolada, ele pode ser partilhado, ressignificado e, em certo grau, aliviado por meio da solidariedade entre os membros de uma comunidade.

A revolução digital trouxe mudanças profundas em quase todos os aspectos da vida humana, e o luto não foi exceção. Com o advento das redes sociais e outras formas de comunicação online, o luto se transformou em uma experiência que, muitas vezes, ultrapassa as fronteiras do mundo físico.

Memoriais virtuais, postagens de despedida, homenagens online e até mesmo o armazenamento digital de memórias de entes queridos falecidos são alguns dos novos fenômenos que surgiram na era digital.

Embora essas formas digitais de luto ofereçam novas maneiras de conexão e suporte, também levantam questões e desafios. Como vivenciar o luto em um ambiente onde as interações são mediadas por telas e mensagens instantâneas? Como equilibrar a necessidade de privacidade com a cultura de compartilhamento que prevalece nas redes sociais?

A virtualização do luto pode ser tanto uma fonte de consolo quanto um gatilho para ansiedades, uma vez que os enlutados podem sentir a pressão de manter uma “performance” do luto para seus círculos sociais online.

Além disso, a presença contínua das redes sociais pode complicar o processo de aceitação da perda, já que perfis de falecidos permanecem online, acessíveis, como se continuassem a fazer parte do cotidiano virtual. A questão aqui é: até que ponto a era digital realmente facilita o processo de luto ou o perpetua, transformando a perda em uma experiência que nunca realmente “desaparece”?

Outro aspecto do luto que merece atenção é o chamado “luto invisível”, que se refere a tipos de perda que não recebem a devida validação social. Perdas como a morte de um animal de estimação, o fim de um relacionamento ou a mudança drástica de vida, como a perda de emprego, muitas vezes não são tratadas com a mesma seriedade que a perda de um ente querido.

No entanto, esses eventos também podem desencadear um profundo processo de luto, que pode ser solitário e desamparado pela falta de reconhecimento social. O luto invisível também se manifesta no luto antecipatório, quando se espera a perda de alguém que ainda está vivo, como no caso de pessoas que cuidam de familiares com doenças terminais.

Esse tipo de luto é particularmente doloroso porque a pessoa já começa a vivenciar a perda antes mesmo que ela ocorra de fato, navegando em um terreno ambíguo entre a vida e a morte, entre a presença e a ausência. A falta de rituais ou de apoio social adequados para esse tipo de perda torna a experiência ainda mais desafiadora e solitária.

Por fim, a experiência do luto é profundamente moldada pela cultura. Diferentes sociedades abordam a perda de maneiras únicas, com tradições, crenças e rituais que oferecem significados específicos para aqueles que estão enlutados. Em algumas culturas, o luto é vivido de maneira intensa e prolongada, com cerimônias elaboradas que podem durar meses ou até anos.

Em outras, a morte é vista como uma transição para outra forma de existência, e o luto é acompanhado por celebrações que enfatizam a continuidade da vida após a morte. Essa diversidade cultural no luto nos mostra que não há uma única maneira de vivenciar a perda, e que cada sociedade, religião e comunidade traz suas próprias formas de dar sentido à morte.

Ao examinar essas tradições, podemos expandir nossa compreensão do luto e reconhecer que a maneira como enfrentamos a perda é influenciada por nossas histórias culturais, valores e crenças.

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O luto, em sua complexidade, é uma experiência que vai além do sofrimento individual e das fases convencionais. Ele nos desafia a pensar sobre a transformação pessoal, a conexão coletiva, a influência da era digital e as perdas invisíveis que muitas vezes não são reconhecidas.

Além disso, a diversidade de abordagens culturais nos mostra que o luto é tão multifacetado quanto a vida humana, e que cada perda carrega em si a potencialidade de gerar novos significados e compreensões sobre a própria existência. Ao fugirmos do lugar-comum, começamos a perceber que o luto não é apenas uma fase de dor, mas também uma experiência de conexão, crescimento e renovação. É uma ressignificação.(Foto: Karolina Kaboompics/Pexels)

AFONSO ANTÔNIO MACHADO 

É docente e coordenador do LEPESPE, Laboratório de Estudos e Pesquisas em Psicologia do Esporte, da UNESP. Leciona na Faculdade de Psicologia UNIANCHIETA. Mestre e Doutor pela UNICAMP, livre docente em Psicologia do Esporte, pela UNESP, graduado em Psicologia, editor chefe do Brazilian Journal of Sport Psychology.

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